DISCOS
Daniel Johnston
Fun
· 13 Mar 2005 · 08:00 ·
Daniel Johnston
Fun
1994
Atlantic


Sítios oficiais:
- Daniel Johnston
- Atlantic
Daniel Johnston
Fun
1994
Atlantic


Sítios oficiais:
- Daniel Johnston
- Atlantic
Bastou que Kurt Cobain trajasse uma t-shirt alusiva a Hi, How Are You? para que se erguessem firmes as orelhas dos predadores mais atentos à fragilidade dos que percorrem o meio musical atrelados à cauda da cadeia alimentar. Pouca resistência ofereceu o sapo Jeremiah (uma das mais salientes criações iconográficas de Daniel Johnston) à feroz insaciabilidade das monstruosas Elektra e Atlantic, que disputaram a assinatura do fenómeno de Austin como se este se tratasse apenas de mais uma presa destinada a ser devorada e, de seguida, defecada no indistinguível amontoado de has beens.

Ambas as discográficas – demasiado empenhadas em acrescentar e retirar dígitos e alíneas ao contrato – não equacionaram sequer a delicada condição mental de Daniel Johnston, que, por sua vez, demonstrava maior preocupação face à hipótese de vir a partilhar um lugar no catálogo da Elektra com os Metallica (que acreditava estarem possuídos pelo demónio), transpondo para último plano a importância monetária a ser encaixada. A proposta inferior da Atlantic acabou por ser aceite, mas não se julgue que isso danificou réstia que fosse da lendária reputação conquistada durante o período em que a magia da música de Daniel se partilhava de mão em mão (com a velhinha cassete como veículo) e de boca em boca. A essência de Johnston não é carne para o dente da indústria, nem tão pouco será descartável após uso; é – para descontentamento de quem sujeito a ela se torna irritadiço – daninha como a erva e cresce auto-suficiente como tal.

Ainda assim e no que diz respeito a este Fun, foi necessário uma base vertical que servisse de suporte à ascensão da hera musical de Johnston, que, afectado por depressões resultantes de pressões, viu-se obrigado distribuir por uma série de colaboradores (os companheiros Butthole Surfers Paul Leary e King Coffey, entre outros) a instrumentalização que supervisionaria e à qual acrescentaria apenas as suas vocalizações. Seria natural temer que este método de gravação a diversas mãos resultasse num disco impessoal e adulterado, porém, e muito por culpa de brilharetes instantaneamente reconhecíveis como “Happy Time” (muito provavelmente, a mais sumarizante de todas as suas músicas) ou “Love Will See You Through”, Fun corresponde, sem sombra de decepção, ao que se possa esperar de um disco de Daniel Johnston: conta com a quantidade ideal de mock-rock (introspecção satírica do género-rei), efusivas demonstrações de amor platónico (muito lhes deve Conor “Bright Eyes” Oberst) e, mais do que na maioria dos seus registos, composições que, pela sua unicidade, só poderiam pertencer a um disco de Daniel Johnston (“My Little Girl” começa de forma quase tribal, para, aos poucos, fazer colidir as carruagens do seu carrocel num muro de cacofonia e calypso invertido).

Fun é multi-funcional enquanto pedra de toque de uma carreira que já vai longa: colocou Johnston à margem do estrelato universal ao revelar-se um fracasso comercial, sublinhou o seu ecletismo como songwriter e comprovou a sua capacidade de partilhar com outrém a autoria de um disco (depois das experiências bem sucedidas ao lado de Jad Fair). Esteticamente longínquo das pérolas caseiras que o tornaram padrinho da estética lo-fi, Fun serve de ponte musical à metamorfose que Daniel Johnston sofreu durante um quarto de século - de imparável compositor de cave a lenda viva respeitada por quem lhe aprecia a música, arte e, claro está, génio.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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