DISCOS
Modest Mouse
The Moon & Antarctica
· 23 Dez 2004 · 08:00 ·
Modest Mouse
The Moon & Antarctica
2000
Epic


Sítios oficiais:
- Modest Mouse
- Epic
Modest Mouse
The Moon & Antarctica
2000
Epic


Sítios oficiais:
- Modest Mouse
- Epic
O rato - destinado a morrer cedo - aspira às sete vidas do gato só porque ambiciona descobrir a razão da sua existência antes que os seus dias cessem. O eterno duelo que opõe Tom a Jerry não é mais que uma simplificação dos factores naturais que separam ambas as espécies animais. E se tudo fosse tão imediato quanto um disco rock? Os machados e bigornas deixariam de ser necessários e em harmonia Teletubbie decifraríamos a "message in a bottle". Na sua frutífera esquizofrenia, Moon and Antárctica não é simples, nem sempre é imediato e - numa avaliação grosseira - fica aquém de ser metade rock. Será, mediante a abordagem, uma pedra de runas sujeita a ser estudada e interpretada. Não terá a mesma intocável significância que OK Computer ou Dark side of the moon, mas transpira equiparável aura de mistério. Sobejamente aclamado por altura do seu lançamento, desconhecia o meu parecer até hoje. E escrevo "hoje" porque, escutado o disco, fica a incerteza no "amanhã".

É comum temer que, ao assinar por uma discográfica de maiores dimensões, o som de uma banda seja domesticado ou castrado de arrojo criativo. O primeiro disco dos Modest Mouse lançado pela Epic contraria esse dogma e demonstra até que ponto um processo de produção adequado pode abrilhantar a alma de um disco. As condições estavam reunidas para que o devido tempo fosse dispensado ao preenchimento dos intervalos instrumentais que moderam o seu ritmo. Dispense-se a devida atenção às sussurrantes texturas que por aqui abundam, e é dar conta de que a magia do seminal disco jaz, afinal, nesse equilíbrio que conjuga o abstraccionismo dos mantos ambientais que cobrem o banjo, as cordas e todos os restantes elementos orgânicos.

Eles que já contavam com um significativo espólio repartido pelas independentes K e Up, decidiram arremessar o espectro do que já era passado contra a parede de criatividade e a partir dos cacos elaborarem algo de raiz. Lá residem os enérgicos hinos camuflados que geralmente servem de base a discos desta envergadura, o nicho de calmaria intermédio e a recta final percorrida a lunática "folk" semi-acústica. Calculo que tantas serão as emoções de uma travessia pelo deserto como as de uma "ego trip" vivida no frio de uma noite em que alguém nos resgatou da cama quente: aqui ressoa o sarcasmo atómico de "Tiny cities made of ashes" (não será uma linha de baixo à frente do seu tempo?), a frustração de fundo de poço em "Alone down here" e o negrume da confissão esperançosa "I came as a rat". O carácter híbrido de The Moon & Antactica prova que são mais que muitos os meios de subsistência a que o rato modesto pode recorrer.

O surgimento e ascensão do colectivo de Seattle veio ao encontro da sobrevivência lógica associada ao rock que mora no verso da medalha. Talvez por isso o universo lírico de Isaac Brok evidencie semelhanças clamorosas quando comparado ao de Frank Black: seja na obsessão por ficção científica ou na forma como elevam o sangue e sémen a um patamar de sensualidade a que normalmente não são associados. Aqui, como em Surfer Rosa a sujidade é "sexy". É de tal forma desolador o modo como o excêntrico vocalista pinta o fim do mundo, que The Moon & Antarctica quase parece bradar o apocalipse como a mais oportuna das ocasiões para procriar e, assim, celebrar a ocasião. É perceptível na nasalidade da voz de Isaac Brok a insanidade de um Beato Salú que, ao multiplicar-se em tantas profecias, arrisca-se a que uma delas se aproxime d'A Verdade. Porém, o mais certo é que o mais cósmico dos discos de Modest Mouse seja apenas um genial compacto de anos a fio sob a influência de folclore relativo ao sobrenatural e filmes como A boy and his dog e toda a saga Mad Max.

Em todo o caso, e mesmo que a alguém não convença musicalmente, Moon and Antarctica prima por sintetizar - com maior eficácia a Ocidente - o estado de espírito de uma geração prestes a receber o novo milénio. Quando a maior preocupação parecia ser o "bug" Y2K, eis que os Modest Mouse se lembraram de transformar a angústia existencialista num grandioso tratado de música (independentemente do género). Caro Dr. Daniel Sampaio, eis o disco que pertence ao lado de todos esses livros pedagógicos. O mundo sobreviveu a 2000 nem que fosse para escutar um disco como este.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
RELACIONADO / Modest Mouse