DISCOS
Le Tigre
This Island
· 15 Out 2004 · 08:00 ·
Le Tigre
This Island
2004
Universal


Sítios oficiais:
- Le Tigre
Le Tigre
This Island
2004
Universal


Sítios oficiais:
- Le Tigre
"Did you read "The Exorcist"?
"Yes."
"What's it about?"
"It's about a little girl who gets possessed by the devil and does a lot of bad things."
"What sort of bad things?"
"She pushes a guy out a window and masturbates with a crucifix and --"
"What does that mean?"
"It's like jerking off, isn't it?"
"Yeah, do you know about jerking off?"
"Oh, sure."
"Do you do that?"
"Yeah, don't you?"


Consta que foram estas as frases - trocadas entre William Friedkin e Linda Blair - que levaram a segunda a ser seleccionada para o papel de protagonista na eternamente aterradora película O Exorcista. Alheie-se da atrocidade das imagens que o diálogo possa sugerir, pois o que importa é a convicção, vontade e destemida atitude evidenciada por Blair. Tamanhos "tomates" viriam a garantir-lhe o estatuto de ícone, antes que se perdesse no série-z de subgéneros como o aparvalhado filme de ninjas ou o tão amado - pelos amantes do mau gosto - Mulheres atrás das Grades. Atrás das grades permanece também, feroz e faminto, o tigre à procura da melhor forma de se evadir das limitações que o Jardim Zoológico lhe impõe.

Carregar a tocha que alumia a incessante demanda de uma facção tão agitada quanto a das riot-grrls pode ser, de facto, um fardo fatigante. Quando o movimento acaba por ceder a todos os clichés que era suposto contornar, é totalmente legítimo que uma das suas líderes resigne ao cargo para, reavaliadas as estruturas, fundar o seu próprio partido. Foi isso que fez Kathleen Hanna. Ciente de que as Bikini Kill tinham alcançado o ponto de saturação, criou a sua banda de armário - Julie Ruin - cujo suporte viria a servir de molde às Le Tigre. Mantém-se intacta a militância feminista, afiaram-se as garras da sensibilidade arty - transparente na crescente preponderância da electrónica.

Antes que quaisquer sistemas de defesa possam ser activados, This Island trepa a muralha das expectativas para seduzir o ouvido com os seus principais atractivos: a solidez resultante da sua maturidade e mais de uma mão cheia de memoráveis faixas. Quase apetece afirmar que este condensa a força dividida entre os dois discos anteriores. A maior conquista deste último lançamento será, porventura, a sua precisa destreza no lançamento de projecteis pop tão infalíveis quanto as mais avançadas armas da máquina de guerra norte-americana. "Eles atacam através do fogo, a nossa arma é a toda-poderosa pop" é o lema da guerrilha Le Tigre. Parecem empenhadas em provar que não há território conquistado a Oriente que valha o gozo de dançar ao som de um disco como este. A ilha do título é o território defendido pela guerrilha e "New Kicks" o grito de guerra a ser entoado pelo comité de boas-vindas face à ameaça Bush.

Para cada disco, as Le Tigre parecem criar uma persona que dá voz ao que de mais exasperante lhes ocorre. Neste caso, é dona de uma luminosa franja, carrega um iô-iô cor-de-rosa numa mão e um cutelo na outra, compra a sua bijutaria no Toys 'R' Us e faz de recortes de banais revistas de moda magníficos postais Dada - a servirem de trípticos a desdobrar em dias de grandes conquistas para a causa feminista. A essência lúdica de This Island é universal. Afinal, é sabido que a definição do sexo à nascença depende apenas de um cromossoma. Cada faixa das Le Tigre é um tijolo a mais no muro de Berlim que as isola do meio hostil dominado pelos homens, e um tijolo a menos naquele que as separa dos que, progressivamente, se vão rendendo aos teclados e beats afeminados. "On the Verge" suplica por um grande pavilhão apinhado de mulheres à beira de um refrão perfeito, ainda que um pouco dejá ecouté. "Don't drink Poison" quase parece uma faixa extraída a um imaginário tributo às Cibo Matto, além do fabuloso resultado da sinergia entre beats - capazes de burlar a anca do Alexandre Frota (esse macho que fará da "Quinta" um harém) - e o flow segundo as Le Tigre. Só após escutar "Seconds" daremos conta de que a primeira etapa do disco era apenas o rastilho para o petardo de jovialidade punk que estoira logo de seguida. Por esta altura os mais cépticos terão já feito as pazes com o chavão riot grrl, enquanto os mais entusiastas já compram tudo o que encontram da Kill Rock Stars na loja on-line da sua preferência. Para bem perto do fim fica reservado "I'm so Excited": clássico das Pointer Sisters que fez furor na década de 80. Perfeito para aulas de step.

Eis treze hinos capazes de colocarem a heterossexualidade entre a espada e a parede, e, por meio do venenoso apelo pop, atordoar a testerona. Prova - ao reprovar a misoginia e sexismo - que, no fundo, há um pouco de queer em cada um de nós e o próprio Tom Selleck até já rapou o bigode: esse histórico bastião da masculinidade.
É sabido que a música deve surgir sempre em primeiro plano, porém as Le Tigre provaram ser exímias no dosificar de especiarias tão raras quanto o manifesto interessante junto dos que se estão borrifando para "politiquices" e a música relevante aos ouvidos dos que ainda nem assimilaram bem a ideia de ver uma mulher de guitarra em punho. Não me admirava que o Tigre se viesse a juntar ao Rato Modesto no Olimpo de filhos pródigos do indie catapultados para as bocas do mundo. É muito provável que à terceira seja mesmo de vez, pois esta ilha tem imenso terreno fértil para todos os pioneiros decididos a explorá-la.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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