DISCOS
Grimes
Miss Anthropocene
· 25 Mar 2020 · 22:51 ·
Some women just want to watch the world burn.
Se há coisa que adoramos dizer é que tempos incertos resultam em álbuns do caralho. Sim, é bem possível que o digamos do alto de um qualquer privilégio, ignorando que pessoas morrem ou definham lentamente à nossa volta, tudo porque preferimos a arte às pessoas. Por outro lado, a arte é sempre preferível às pessoas. Já o era antes e continua a sê-lo em tempos de isolamento. É por isso que perdemos horas a ver a Netflix em vez de ligar aos amiguinhos, independentemente de todas as House Partys do mundo.
Os tempos incertos de Grimes começaram bem antes da quarentena. Começaram quando ela, num assomo de estupidez ou inocência, disse ipsis verbis que queria tornar o aquecimento global «divertido», tendo-se depois insurgido contra a mesma imprensa à qual teceu essas palavras - um método que não começou nem acabará com Trump e que, bem, a torna ainda mais estúpida e inocente. Vai daí, eis Miss Anthropocene, trocadilho entre misantropia e antropocénico. E é este o momento - este trocadilho pateta - em que começamos a desculpar Grimes de toda a sua parvoíce.
É que, como já devem ter percebido ao longo da vida, a humanidade curte vilões - os seus Trumps, os seus Jokers, os seus Vascos Pulidos Valentes -, ao ponto de encarar a sua vilania como um mero traço de personalidade. A humanidade curte gente que não está com merdas e que diz o que lhe apetece independentemente do quão chanfrado isso soe. Porra, eu próprio comecei a receber elogios depois de escrever textos carregados de ódio, o que muito me agradou, porque não há nada de que vilões e misantropos mais gostem do que massagens no ego, mais até que massagens nos genitais.
Ver uma artista como Grimes cair lentamente no lodo da vilania é algo que nos enoja, mas que estranhamente também nos atrai. E isso é algo que acontece também com Kanye West, acontece com Gene Simmons, acontece com dezenas de outros artistas ao longo da história da música. O rock começou por ser um vilão - o puto mal-educado que não trabalhava e só pensava em sacar gajas e encher a testa de brilhantina. Foi precisamente esse lado maléfico que o tornou numa religião à escala planetária. Somos bons, somos cristãos: mas a cristandade é também sofrimento, e sofrimento é melhor quando é schadenfreude.
Grimes não se tornou vilã só por ter feito um disco intitulado Miss Anthropocene, claro. Tornou-se muito antes, quando começou a defender o papá do seu futuro rebento, atraiçoando a sua própria classe (deveremos enforcá-la? Nah, também já chega de fetichizar a guilhotina, e ela ainda fará outro disco porreiro antes de merecer de facto ser enforcada). Tornou-se vilã no dia em que disse que a inteligência artificial iria suplantar os humanos (desejar o fim da sua raça: há algo mais vilanesco?). Tornou-se vilã no dia em que se inspirou numa banda militar da Coreia do Norte (bem, mal nenhum: desafio-vos a ouvir isto e a não sentirem um fervor correr dentro de vós). Tornou-se vilã, porque ela própria quer ser vilã, como explicou à Crack.
A queda atrai-nos, e é por isso que o Satanás de Milton é um romântico. Grimes parece querer cair com toda a força, e é por isso que também nela há romance - um romance virtual, com a máquina ou a ideia de máquina, com ruído digital a chocar de frente com as memórias que o passado guardou numa disquete, do trance ao drum n' bass aos Enigma e até ao nu metal, sendo que este último também tem um forte potencial vilanesco (na medida em que é merda e sempre foi merda).
Miss Anthropocene, que é um álbum sobre o fim do mundo, acaba de se tornar na nossa melhor companhia para este fim do mundo particular em que o futuro, uma vez mais, parece não poder ser previsto através do estudo da história ou de uma qualquer fórmula matemática. A humanidade está em casa a braços com uma pandemia e à espera que a economia impluda e nos mate a todos? Que se foda, ouçam a "My Name Is Dark" (que até inclui o verso unfuck the world, talvez gamado à caríssima Angel Olsen). Sejamos vilões. Toca a rir de tudo isto. Morreremos, mas com o rosto chupado para cima num esgar de psicopatia. O álbum em que Grimes cedeu ao seu lado negro é também o seu melhor - porque tempos incertos resultam em álbuns do caralho.
Paulo CecílioOs tempos incertos de Grimes começaram bem antes da quarentena. Começaram quando ela, num assomo de estupidez ou inocência, disse ipsis verbis que queria tornar o aquecimento global «divertido», tendo-se depois insurgido contra a mesma imprensa à qual teceu essas palavras - um método que não começou nem acabará com Trump e que, bem, a torna ainda mais estúpida e inocente. Vai daí, eis Miss Anthropocene, trocadilho entre misantropia e antropocénico. E é este o momento - este trocadilho pateta - em que começamos a desculpar Grimes de toda a sua parvoíce.
É que, como já devem ter percebido ao longo da vida, a humanidade curte vilões - os seus Trumps, os seus Jokers, os seus Vascos Pulidos Valentes -, ao ponto de encarar a sua vilania como um mero traço de personalidade. A humanidade curte gente que não está com merdas e que diz o que lhe apetece independentemente do quão chanfrado isso soe. Porra, eu próprio comecei a receber elogios depois de escrever textos carregados de ódio, o que muito me agradou, porque não há nada de que vilões e misantropos mais gostem do que massagens no ego, mais até que massagens nos genitais.
Ver uma artista como Grimes cair lentamente no lodo da vilania é algo que nos enoja, mas que estranhamente também nos atrai. E isso é algo que acontece também com Kanye West, acontece com Gene Simmons, acontece com dezenas de outros artistas ao longo da história da música. O rock começou por ser um vilão - o puto mal-educado que não trabalhava e só pensava em sacar gajas e encher a testa de brilhantina. Foi precisamente esse lado maléfico que o tornou numa religião à escala planetária. Somos bons, somos cristãos: mas a cristandade é também sofrimento, e sofrimento é melhor quando é schadenfreude.
Grimes não se tornou vilã só por ter feito um disco intitulado Miss Anthropocene, claro. Tornou-se muito antes, quando começou a defender o papá do seu futuro rebento, atraiçoando a sua própria classe (deveremos enforcá-la? Nah, também já chega de fetichizar a guilhotina, e ela ainda fará outro disco porreiro antes de merecer de facto ser enforcada). Tornou-se vilã no dia em que disse que a inteligência artificial iria suplantar os humanos (desejar o fim da sua raça: há algo mais vilanesco?). Tornou-se vilã no dia em que se inspirou numa banda militar da Coreia do Norte (bem, mal nenhum: desafio-vos a ouvir isto e a não sentirem um fervor correr dentro de vós). Tornou-se vilã, porque ela própria quer ser vilã, como explicou à Crack.
A queda atrai-nos, e é por isso que o Satanás de Milton é um romântico. Grimes parece querer cair com toda a força, e é por isso que também nela há romance - um romance virtual, com a máquina ou a ideia de máquina, com ruído digital a chocar de frente com as memórias que o passado guardou numa disquete, do trance ao drum n' bass aos Enigma e até ao nu metal, sendo que este último também tem um forte potencial vilanesco (na medida em que é merda e sempre foi merda).
Miss Anthropocene, que é um álbum sobre o fim do mundo, acaba de se tornar na nossa melhor companhia para este fim do mundo particular em que o futuro, uma vez mais, parece não poder ser previsto através do estudo da história ou de uma qualquer fórmula matemática. A humanidade está em casa a braços com uma pandemia e à espera que a economia impluda e nos mate a todos? Que se foda, ouçam a "My Name Is Dark" (que até inclui o verso unfuck the world, talvez gamado à caríssima Angel Olsen). Sejamos vilões. Toca a rir de tudo isto. Morreremos, mas com o rosto chupado para cima num esgar de psicopatia. O álbum em que Grimes cedeu ao seu lado negro é também o seu melhor - porque tempos incertos resultam em álbuns do caralho.
pauloandrececilio@gmail.com
RELACIONADO / Grimes