DISCOS
Boards of Canada
Music has the Right to Children
· 03 Set 2004 · 08:00 ·
Boards of Canada
Music has the Right to Children
1998
Warp Records


Sítios oficiais:
- Boards of Canada
- Warp Records
Boards of Canada
Music has the Right to Children
1998
Warp Records


Sítios oficiais:
- Boards of Canada
- Warp Records
Quantas e quantas vezes se acorda de um pesadelo mais perturbante para um dia de desassossego e de dificuldades permanentes de sintonização com a realidade: “mas como é que...?”, “será mesmo...?” e outras meias-questões sem resposta acabam por dominar o regresso ao estado de vigília total, ao mesmo tempo que a mente teima em fintar-nos de volta para o cenário que desenhou nas nossas costas e que, aproveitando a nossa fraqueza, nos conseguiu impingir temporariamente. Music has the Right to Children existe para complementar - ou mesmo provocar por si só - estes estados de inquietação. "I do actually believe that there are powers in music that are almost supernatural. I think you actually manipulate people with music, and that is definitely what we are trying to do. People go on about hypnotizing people with music, or subliminal messages, and we have dabbled in that intentionally”. Quem fala assim é Marcus Eoin, que em parceria com Michael Sandison dá corpo e espírito aos Boards of Canada. Ambos eram já bastante calejados quando a atenta Skam Records, corria o ano de 1996, chocou frontalmente com uma cópia de Twoism, que de simples disco gravado para os amigos haveria de passar a objecto de culto para coleccionadores, ávidos de uma das raríssimas cópias existentes até que a Warp Records (que acolheria os Boards of Canada em 1998) tivesse decidido, em 2002, a reedição em forma de EP de oito faixas.

Twoism, originalmente selado pela Music70, a editora do grupo, culminava praticamente vinte anos de experiências que foram da simples aprendizagem dos instrumentos mais convencionais à combinação de arrojados exercícios sonoros – a maior parte das vezes obtidos à custa da manipulação e combinação de sons capturados de televisão, rádio e computadores – e videos caseiros pejados de mensagens subliminares e de um forte apelo místico. High Scores, o fantástico EP subsequente que contava com “Everything you do is a Balloon” (tem de ser uma das melhores músicas de e para sempre, no campo da electrónica ambiental), recuperaria a metodologia previamente testada: sintetizadores analógicos a torto e a direito, batidas downtempo e midtempo e o electro descarnado da deliciosa “Nlogax” (algures entre “Radio Ga Ga” e palminhas), sempre com o manómetro do psicadelismo no redline.

Foram estes os carris que guiaram Music has the Right to Children (MHTRTC). Como declaração de intenções definitiva, isola-se e distingue-se facilmente quando surgem as comparações directas com a obra de outras grandes autoridades da electrónica “pica-miolos”: contrapõe à tortuosidade e complexidade rítmica dos compinchas Autechre a constância de estruturas à prova de fractura, que o tornam extremamente cativante e de digestão invulgarmente fácil para música destes territórios. Mas MHTRTC é, em boa verdade, um disco de pormenores, e é-o cada vez mais à medida que quem o ouve se deixa cativar. Os inúmeros pequenos detalhes aprisionam “de surra” a atenção do ouvinte, embrenhando-o numa espécie de transe que o leva, por exemplo, a acompanhar interiormente vocalizações esparsas e aparentemente desconexas, peças de um Lego com resultado final imprevisível. Episódios como o vocoder - essa tecnologia de efeitos desgraçadamente catastróficos quando caída nas mãos erradas – que transfigura uma criança e o seu “I love you!” em algo assustadoramente parecido com aquilo que seria a recepção de um contacto extraterrestre (“The Color of Fire”), disparos que trespassam aço, vozes mecânicas trucidadas (“Telephasic Workshop”) ou as distorções e desfasamentos constantes transformam a audição de Music has the Right to Children numa experiência paradoxalmente cativante e perturbadora. Há uma envolvência de todo invulgar para um género que, por norma, exige predisposição e disponibilidade para que dele se retire deleite – em MHTRTC, e na generalidade do restante repertório dos Boards of Canada, o movimento dá-se em sentido inverso: a iniciativa não parte de nós; sujeitar-se à dominação é suficiente. A batida de “Sixtyten” e o baixo de “An Eagle in your Mind” atingem-nos as entranhas, ao mesmo tempo que o scratching que só volta a aparecer na mais dreamy “Rue the Whirl” surge a perturbar a caminhada em direcção ao transe profundo. Momentos fugazes como “Triangles & Rhombuses” ou a especialmente minimal “Bocuma” podem parecer acessórios quando escutados salteadamente com, por exemplo, o banho de funk alucinogénico que é “Aquarius”, mas acabam por revelar-se preciosos, articulando estrategicamente as peças nucleares e formando em Music has the Right to Children um objecto uno, infinitamentre maior que a soma das suas partes e, por isso, destinado a ser deglutido de enfiada. Nunca a fronteira entre a realidade vivida e a realidade imaginada foi tão ténue – aqui, tem-se sempre um pé para cada lado.
Carlos Costa
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