DISCOS
Björk
Vespertine
· 23 Mai 2004 · 08:00 ·
Björk
Vespertine
2001
One Little Indian


Sítios oficiais:
- One Little Indian
Björk
Vespertine
2001
One Little Indian


Sítios oficiais:
- One Little Indian
Da feira de vaidades, que assenta arraiais na passadeira vermelha, emerge uma fada glaciar trajando um vestido em forma de cisne. Parece ter chegado naquele momento ao mundo, saída da mais célebre obra de Saint-Exupéry . Decorre o ano de 2001, é noite de Óscares, e Björk promove o seu próximo álbum de então, da forma mais descarada e desarmante possível. No corpo de Mariah Carey pareceria ridículo; a cobrir a pele da islandesa, o cisne assenta perfeitamente, tal como tudo. As plásticas sucessivas não chegam para sustentar uma carreira, e a desflorestação de pin-ups, que a indústria tenta fazer passar por cantoras, em nada parece afectar o crescimento do pequeno arbusto chamado Björk. Dizem que só as baratas e Madonna sobreviverão ao Holocausto. Desenganem-se. Num âmbar coberto de flocos de neve, é a nossa princesa de Reykjavik que terá direito à eternidade (nem que seja por ter inspirado os seus milhares de fãs a descobrirem os outros encantos do seu país). Enquanto esta força da natureza continuar no activo, os admiradores podem contar com discos inovadores e os admiradores incondicionais com um saldo bancário mais reduzido.

Vespertine é o quarto álbum de originais (se entendermos Selmasongs como um registo paralelo) e mais uma flagrante demonstração do desmesurado empenho com que Björk se acerca de cada novo trabalho, que corresponde igualmente a um novo conceito e à aplicação de subtis variantes no processo de composição. Muda também a equipa de colaboradores - perdão, "dream team" que Björk convoca para revestir a voz de texturas concebidas à sua imagem. Alguém se atreveria a negar um convite da cintilante cantora? O senso comum jamais o permitiria, e lá estão os Matmos e Herbert (entre outros) a darem conta das "micro" e "macro" programações respectivamente. Desta vez, o motif centra-se na manipulação de sons mínimos e quase sempre orgânicos: mar de pop / crack / blips captados de ínfimos ruídos que a natureza produz. A modelo desta passerelle é só uma, os estilistas são diversos. Arrisco a referir "Unison" como o vestido de noiva que encerra o desfile, pela forma radiante como caminha pé ante pé e o seu refrão que abraça os que a contemplam.

Domestika foi o título prévio atribuído ao disco durante a sua gravação. Faz todo o sentido, já que Vespertine é o "Manual Fada do Lar" assinado por Björk, com antídotos para desgostos amorosos e soluções para dilemas da vida comum. "Home is where the heart is", e lá estão os ambientes envolventes e etéreos que nos fazem sentir em casa. Vespertine trata das descobertas feitas entre quatro paredes. Percorre o prazer, lazer, sofrer e sempre o viver ao longo das suas doze faixas. A favor do conceito do disco, os complementares telediscos, onde Björk se expõe de uma forma quase comovedora que só fortalece o pacto de intimidade que mantém com os admiradores. "Cocoon" recolhe os sentidos à calmaria uterina, para só depois fazer implodir as emoções nas melodias na repetição de "To a boy". Acumula e revolve essas mesmas emoções, para explodir no culminar da sensualidade de "Pagan poetry" - mais uma ode à sexualidade sensorial (lado a lado com "Enjoy", de Post). "Frosti" é a caixinha de música que prenuncia o que se segue. Interlúdio que deve qualquer coisa a Shoji "Akira" Yamashiro. "Aurora" é o raiar de um tom épico (mas não pretensioso) que vai dominando a segunda metade do disco, para, em paz, morrer na praia em "Harm of will".

Vespertine é a bola de cristal a partir da qual podemos vislumbrar a vida caseira e alma da nossa islandesa favorita. Pasmam os amantes ao se depararem com os singles de Björk importados do Japão. Sorriem perante o exotismo dos caracteres japoneses, mas, na verdade, é Vespertine a frequência que os une em telepatia. Pode-se pedir mais que isso a um disco? Creio que não.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
RELACIONADO / Björk