DISCOS
Mão Morta
Nus
· 18 Abr 2004 · 08:00 ·
Mão Morta
Nus
2004
Cobra / BLITZ
Sítios oficiais:
- Mão Morta
- Cobra
- BLITZ
Nus
2004
Cobra / BLITZ
Sítios oficiais:
- Mão Morta
- Cobra
- BLITZ
Mão Morta
Nus
2004
Cobra / BLITZ
Sítios oficiais:
- Mão Morta
- Cobra
- BLITZ
Nus
2004
Cobra / BLITZ
Sítios oficiais:
- Mão Morta
- Cobra
- BLITZ
No atrofiado mercado da música portuguesa, extremado entre mainstream (quase sempre cópias de modelos anglo-saxónicos bem produzidas, mas sem ideias) e um underground condenado a um círculo de "iluminados", os Mão Morta ocupam um singular espaço. A banda de Adolfo Luxúria Canibal e Miguel Pedro podia ser hoje uma espécie de Xutos, se não tivesse imposto a si própria o recolhimento após o sucesso da canção "Budapeste". Nos últimos anos, Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar se Tornou Irrespirável e Primavera de Destroços foram ilhéus de criatividade e identidade vincada no panorama português.
Nus, o novo disco, segue a calma perturbada de Primavera de Destroços - a violência e a estranheza permanecem centrais na estética Mão Morta, mas surgem em temas que não exigem a distorção e a berraria explícitas para obter essas premissas. A electrónica e os sons orquestrais são mais explorados do que no passado e, sem ser um disco de ruptura, adiantam-se aqui novas pistas para o futuro dos Mão Morta.
Baseado no Uivo de Allen Ginsberg, Nus é um disco que, mesmo não se assumindo como conceptual, parte da reflexão acerca dos "espíritos da geração" e dos seus destinos (o vazio, a loucura, o conformismo) que Ginsberg lamentou e que os Mão Morta recuperam para falar da sua geração, de uma forma que é mais implícita do que directa.
O disco abre com a peça mais complexa que os Mão Morta já criaram. Utilizo o termo "peça" porque "Gumes" é uma suite de 25 minutos. São oito "andamentos", cada um deles com diferentes registos e sem seguimento narrativo linear. A técnica beat do cut-up é aqui aplicada, tanto na estrutura aleatória como nas letras. O que conta é a sugestão, o momento, o jogo das palavras. Há referências atípicas nos Mão Morta, próximas da música erudita. Há um vaudeville melancólico a meias com Marta Ren (Sloppy Joe), em bicos de pés, gracioso sobre o choro resignado do violino. Há teorizações sobre energias vindas de aquecedores que têm algo a dizer - Boris Vian gostaria de ouvir o diálogo entre Pedro Laginha e Adolfo. Há incitamentos à rebelião a recordar "Juramento sem Bandeira" dos Pop'dell Arte.
A parte final de "Gumes" louva os "corpos belos do amor", os "junkies do caos, prisioneiros da liberdade". Questionamos se estamos perante rock, se o rock é isto, pianos, declamações e uma orquesta a engrandecer repetidos "salvé". E só por isso, por desafiar os Mão Morta e quem os ouve a sair do casulo das guitarras, "Gumes" merece ser lembrado e ouvido.
Depois de uma canção tão desafiante, estranhamos "Gnoma", a canção mais fraca do disco. Se o tema não é particularmente bom - demasiado pop-rock radiofónico para uma canção dos Mão Morta -, o refrão é pavoroso. As power chords não ajudam, mas quem se destaca pelo pior é Miguel Guedes, estranhamente próximo do registo vocal de Manuel Cruz, dos saudosos Ornatos Violeta, se este não fosse um bom vocalista, mas antes uma caricatura de si próprio. "Gnoma" é canção para esquecer e fazer de conta que não consta de Nus.
"Vertigem" é uma canção divagante, emaranhado de cordas e guitarra a desenhar melodias simples, ao jeito das canções do disco anterior. O refrão é, porém, Mão Morta vintage, na melhor tradição de "Anarquista Duval" - um urro cavernoso em uníssono grita "vertigem" e as guitarras aceleram a mesma (o poder de três guitarras é algo a explicar pelos cientistas).
É estranha a passagem da demolidora "Vertigem" para a swingante "Estilo", tema marcado por um ritmo dub de baixo, guitarra e programações, com uma guitarra bluesy a acrescentar a pinta (o estilo, o estilo...). Um falso refrão repete em coro "é preciso é estilo", fria e secamente. Adolfo, petulante, disseca, bem a propósito, petulâncias e certezas de quem é jovem e tem o mundo na mão. Uma música inconfundivelmente Mão Morta, mesmo que eles nunca tenham feito nada assim.
"Cárcere" é rock'n'roll embriagado, jogo de guitarras rock-blues a relembrar "Latrina", potencial single se palavras como "merda", "dejecto pútrido" e "espermas" não assustassem os autómatos programadores das nossas rádios. Está nesta canção a chave do conceito do disco. Na afirmação "não era esta a liberdade lisérgica que te estava prometida", Adolfo sintetiza o sentimento de uma geração que foi a sua, mas que facilmente se transporta para outras gerações e outros sonhos por completar. "Cárcere" é a "casa encaixotada", a "letargia de junkie sem tempo", "o medo de não poderes fugir de ti".
A última canção, "Morgue", é um majestoso sussurro, um delicado rock spacey, guitarra sonhadora, encharcada em delay, a voz a repetir "frio", "arrepio", o "vazio", num notável jogo verbal. Induz-se a hipnose dos ouvidos e o sonho da mente. "Morgue" é um dos melhores temas de sempre dos Mão Morta e, mais uma vez, não se assemelha a nada do que eles já tinham feito.
Pedro RiosNus, o novo disco, segue a calma perturbada de Primavera de Destroços - a violência e a estranheza permanecem centrais na estética Mão Morta, mas surgem em temas que não exigem a distorção e a berraria explícitas para obter essas premissas. A electrónica e os sons orquestrais são mais explorados do que no passado e, sem ser um disco de ruptura, adiantam-se aqui novas pistas para o futuro dos Mão Morta.
Baseado no Uivo de Allen Ginsberg, Nus é um disco que, mesmo não se assumindo como conceptual, parte da reflexão acerca dos "espíritos da geração" e dos seus destinos (o vazio, a loucura, o conformismo) que Ginsberg lamentou e que os Mão Morta recuperam para falar da sua geração, de uma forma que é mais implícita do que directa.
O disco abre com a peça mais complexa que os Mão Morta já criaram. Utilizo o termo "peça" porque "Gumes" é uma suite de 25 minutos. São oito "andamentos", cada um deles com diferentes registos e sem seguimento narrativo linear. A técnica beat do cut-up é aqui aplicada, tanto na estrutura aleatória como nas letras. O que conta é a sugestão, o momento, o jogo das palavras. Há referências atípicas nos Mão Morta, próximas da música erudita. Há um vaudeville melancólico a meias com Marta Ren (Sloppy Joe), em bicos de pés, gracioso sobre o choro resignado do violino. Há teorizações sobre energias vindas de aquecedores que têm algo a dizer - Boris Vian gostaria de ouvir o diálogo entre Pedro Laginha e Adolfo. Há incitamentos à rebelião a recordar "Juramento sem Bandeira" dos Pop'dell Arte.
A parte final de "Gumes" louva os "corpos belos do amor", os "junkies do caos, prisioneiros da liberdade". Questionamos se estamos perante rock, se o rock é isto, pianos, declamações e uma orquesta a engrandecer repetidos "salvé". E só por isso, por desafiar os Mão Morta e quem os ouve a sair do casulo das guitarras, "Gumes" merece ser lembrado e ouvido.
Depois de uma canção tão desafiante, estranhamos "Gnoma", a canção mais fraca do disco. Se o tema não é particularmente bom - demasiado pop-rock radiofónico para uma canção dos Mão Morta -, o refrão é pavoroso. As power chords não ajudam, mas quem se destaca pelo pior é Miguel Guedes, estranhamente próximo do registo vocal de Manuel Cruz, dos saudosos Ornatos Violeta, se este não fosse um bom vocalista, mas antes uma caricatura de si próprio. "Gnoma" é canção para esquecer e fazer de conta que não consta de Nus.
"Vertigem" é uma canção divagante, emaranhado de cordas e guitarra a desenhar melodias simples, ao jeito das canções do disco anterior. O refrão é, porém, Mão Morta vintage, na melhor tradição de "Anarquista Duval" - um urro cavernoso em uníssono grita "vertigem" e as guitarras aceleram a mesma (o poder de três guitarras é algo a explicar pelos cientistas).
É estranha a passagem da demolidora "Vertigem" para a swingante "Estilo", tema marcado por um ritmo dub de baixo, guitarra e programações, com uma guitarra bluesy a acrescentar a pinta (o estilo, o estilo...). Um falso refrão repete em coro "é preciso é estilo", fria e secamente. Adolfo, petulante, disseca, bem a propósito, petulâncias e certezas de quem é jovem e tem o mundo na mão. Uma música inconfundivelmente Mão Morta, mesmo que eles nunca tenham feito nada assim.
"Cárcere" é rock'n'roll embriagado, jogo de guitarras rock-blues a relembrar "Latrina", potencial single se palavras como "merda", "dejecto pútrido" e "espermas" não assustassem os autómatos programadores das nossas rádios. Está nesta canção a chave do conceito do disco. Na afirmação "não era esta a liberdade lisérgica que te estava prometida", Adolfo sintetiza o sentimento de uma geração que foi a sua, mas que facilmente se transporta para outras gerações e outros sonhos por completar. "Cárcere" é a "casa encaixotada", a "letargia de junkie sem tempo", "o medo de não poderes fugir de ti".
A última canção, "Morgue", é um majestoso sussurro, um delicado rock spacey, guitarra sonhadora, encharcada em delay, a voz a repetir "frio", "arrepio", o "vazio", num notável jogo verbal. Induz-se a hipnose dos ouvidos e o sonho da mente. "Morgue" é um dos melhores temas de sempre dos Mão Morta e, mais uma vez, não se assemelha a nada do que eles já tinham feito.
pedrosantosrios@gmail.com
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