DISCOS
Vakula
A Voyage To Arcturus
· 04 Mai 2015 · 11:47 ·
Vakula
A Voyage To Arcturus
2015
Leleka


Sítios oficiais:
- Vakula
- Leleka
Vakula
A Voyage To Arcturus
2015
Leleka


Sítios oficiais:
- Vakula
- Leleka
Fantasia intemporal.
Não sendo de todo invulgar um determinado livro inspirar um músico, é inusual que um músico (quase) se aproprie de um livro de forma tão obsessiva para o adaptar. O que o cinema faz por natural afinidade – edificar as imagens sugeridas, ou corporizar um grupo de personagens mergulhadas num dilema a aguardar catarse –, a música é forçosamente ambígua no que a acção narrativa diz respeito. Não é decorativa. É música! Ajuda ao sonho, ajuda a contar a história (quando bem escrita). Mas nunca é a história em si.

Mikhaylo Vityuk é o realizador de uma narrativa fantasiosa que o inspirou. Detalhou a viagem por sons, instigando no ouvinte uma miríade de sensações capazes de despoletar a imaginação. O poder da narrativa do original permitiu uma interpretação. É disso que se trata A Voyage To Arcturus, título que Vakula assume para o disco, apropriando-se subjectivamente do original como um realizador de cinema se apropriaria de um livro inspirador, nunca pretendendo alterar-lhe o título para não abdicar do espírito absoluto.

Para falar deste disco de Vakula, poder-me-ia sentir intimidado pela falta de leitura da obra literária que a inspira. Não foi por falta de pesquisa. Foi mesmo por falta de uma actual edição do livro em português. Nem no banco de dados da mítica colecção sci-fi da Europa-América encontrei rasto da filosófica obra de David Lindsay.

Já agora, quem é David Lindsay? É um obscuro autor de ficção-cientifica do milénio passado, romancista com abstracto entendimento da realidade, escrevendo ilusões metafísicas que nunca lhe trouxeram um verdadeiro reconhecimento, apesar de J. R. R. Tolkien ter lido A Voyage To Arcturus com grande interesse e ter elogiado a obra pela componente religiosa, filosófica e moral. E pouco mais se conseguirá sacar do autor na Internet para além da biografia descrita no Wikipedia.

Cada capítulo deste disco reflecte um capítulo da estória de Lindsay. Cada cena tem uma estória. E cada estória tem um determinado estado de espírito. E dado ao conceito – metafísico do original, ajuízo – cada segmento deste fantasioso épico projecta impetuosidade. Psiconavegação, acima de tudo. Não formulamos os protagonistas, mas estamos dispostos a imaginar os dilemas por que passam em busca da catarse. Se o cinema exige do espectador a “suspensão da descrença” para que este acredite no objectivo da jornada, também nos devemos libertar de preconceitos estéticos que erguem este edifício sonoro – onde de tudo um pouco cabe ergonomicamente segundo o quimérico entendimento do autor.

Vakula – que já se revelou enfastiado com os actuais paradigmas da chamada “música de dança” urbana – mostra numa subtil rajada uma série de deambulações empíricas – exigências pessoais a determinar o mecanismo do relógio? – que advieram de uma ideia, que por sua vez conduziram a um conceito e a um estado de espírito. Apesar de ser conhecido pelas pertinentes dissertações Deep-House (algo) ambientalistas, e You’ve Never Been To Konotop (antologia quase álbum de estreia) ter demonstrado que é um homem de talentosos recursos, Mikhaylo Vityuk mantém-se como um ilustre ignorado, apesar das óbvias qualidades – muito à semelhança do destino literário de David Lindsay?

A Voyage To Arcturus não é um disco de género musical. Esta obra (o verdadeiro disco de estreia de Vakula), no que à música diz respeito (advirá daí o motivo porque ninguém olha para ele, ou porque a Ucrânia é um país olhado de soslaio pela elite cultural desta Europa cínica?), não é catalogável num ficheiro óbvio. A Voyage To Arcturus não é um disco deste tempo… Isto simplesmente porque este tempo não está talhado para “filmes” que exijam tempo a serem assimilados. A necessidade de escutar e pensar há muito que esta Era digital do imediato relegou para secundário.

Como “filme”, estamos no campo da ficção-cientifica, ou talvez mais da fantasia pura. Castiçais de espelhos reflectem a realidade de espelho para espelho, de distorção em distorção. Temos House, pouco… mas profundo. Temos longas deambulações cósmicas em modo electrónica alemã de 70 (onde o esquecido Klause Schultz sobressai em relação a Neu! ou Popol Vuh). Temos ambientalismo de 90, em que The Orb ou Pete Namlock se desencapotam como deuses. Temos ainda perfume baleárico, psicadelismo Pop, Funk, Sun-Ra… e até o cheiro a terra molhada de Kuniyuki Takahashi.

Vakula trabalhou para satisfação do seu ser. Trabalhou para si. Honesto. Desafiando-se. Acredito que este disco é uma realização pessoal de Mikhaylo Vityuk. Celebremo-la como tal porque tão cedo não haverá “filme” igual com tamanha elaboração onírica.
Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com
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