DISCOS
Kanye West
Yeezus
· 07 Nov 2013 · 11:12 ·
Kanye West
Yeezus
2013
Def Jam Records


Sítios oficiais:
- Kanye West
- Def Jam Records
Kanye West
Yeezus
2013
Def Jam Records


Sítios oficiais:
- Kanye West
- Def Jam Records
Ámen!
Kanye West é um caso raro no século XXI. A figura de ídolo do rock está morta (culpe-se não a Internet mas os Sonic Youth), as grandes seitas musicais de anteriormente foram trocadas por acólitos predispostos a venerar o primeiro pedaço de maná que lhes apareça por debaixo dos narizes abandonando-o subitamente pela next big thing, não há consenso geral sobre o que constitui uma "grande banda" ou um "grande artista" ou alguém capaz de ocupar o trono deixado vago por Jimi Hendrix, Bob Marley, Kurt Cobain e demais sábios da cultura pop - algo excelente e assaz democrático segundo alguns, um vazio que o tempo não mais preencherá segundo outros. West é diferente: quando falamos d'Ele (maiúscula, porque mesmo um ateu tem de respeitar), ou da sua música, temos invariavelmente de falar do mito, das origens humildes, dos memes que inspirou - Bush não quer saber dos pretos, Taylor Swift merecia menos um prémio que Beyoncé, esse género de coisas que ainda hoje continuam a ter a sua graça, como o comprovou recentemente Win Butler dos Arcade Fire -, da vida pessoal com socialites cuja entrada no topo se fez à custa de um porno amador, do impacto da morte da mãe, da transformação total que isso acarretou, enfim: de toda a sua imagem pública.

Não basta só a música, embora a música também tenha o seu quinhão de responsabilidades. Mantendo o simbolismo bíblico, falemos de Kanye West segundo um padrão de tempo a.2010 e d.2010, isto é, o ano do seu magnum opus: My Beautiful Dark Twisted Fantasy. Se dantes tínhamos uma mão cheia de belíssimas canções, casos por exemplo de "Touch The Sky", "Gold Digger" ou mesmo "Love Lockdown", com MBDTF encontrámos Kanye com verdadeiras ganas de ser maior do que a vida (e não apenas bitaites deixados ao acaso), deixar uma marca indelével na história pop, Ele cujo gosto pela música não deve ser nunca posto em causa - como o dizia Sheryl Garratt, numa referência elogiosa aos saudosos KLF, so many people who make pop actually despise it - ou não veríamos influências na sua sonoridade de gente tão díspar como Jay-Z e os Can, ou, neste mesmo Yeezus, bandas prog húngaras perdidas no tempo lado a lado com Nina Simone. Kanye West quer ser Deus na pop porque é alguém que gosta verdadeiramente de ter uma vida rodeada de discos e canções e não apenas um pateta alegre com sede de poder (claro que o poder, a vir, é sempre um bónus, independentemente do que vá cantando em coisas como "Pinnochio Story").

Yeezus seria sempre um disco muito difícil para Kanye West, por se suceder ao já supracitado clássico instantâneo que é MBDTF. Seria loucura tentar competir com aquela produção cuidadosa ou até mesmo criar um segundo volume - acabaria invariavelmente por ser visto como um parente pobre, uma cópia falhada ou uma sequela que não deveria ter acontecido. Nesses moldes, o som minimalista e agressivo de Yeezus é um golpe de génio: não só transmite a ideia de que Kanye, o mito, se está a cagar para aquilo que o público em geral pense da reviravolta sonora como mostra que Kanye, o melómano, está bem atento as movimentações dentro e fora da indústria. Como não pensar que novatos como os Death Grips ou os Odd Future tiveram um peso importante no seu novo percurso? Afinal de contas, um Deus tem também de estar atento àquilo que fazem as minorias, e dentro do circuito do hip-hop underground é o noise que tem causado mossa (para o ano aguarde-se uma mini-explosão dos clipping., por exemplo).

Por toda a aura que construiu em seu redor e por todos os discos que tem colocado no mundo, ninguém merecerá mais o manto do que Kanye. Ainda que o hip-hop, como sabemos, não seja muito dado à construção de "figuras eternas"; de Grandmaster Flash aos Public Enemy, de Nas a Eminem, ninguém sobreviveu na spotlight durante muito tempo. Por outro lado, seria injusto considerá-lo apenas um tipo dentro da esfera hip-hop, já que a sua música tem transcendido esse rótulo. Em "Black Skinhead", ressuscita o Glitter beat para fazer uma canção poderosíssima (outra prova de força: quem mais seria capaz de repescar a única glória de um pedófilo condenado?); em "I Am A God" é a música industrial, aliada a uma certa toada rave, que faz estragos; e "Blood On The Leaves", como já referido, tem a ousadia de buscar a voz de Nina Simone interpretando um clássico do blues para a transformar no momento mais próximo de MBDTF deste disco. Yeezus é, no entanto, tremendo do início ao fim, sinal de vitalidade e manifesto avant-garde de alguém que um dia disse querer ser um novo Michael Jackson. Mas Jackson nunca teria tido a coragem de compor um disco assim: alienante, desafiante, ao mesmo tempo auto-destrutivo e sinal de que há um grau enorme de genialidade dentro daquela cabeça. Kanye West é Deus. Mas o que se segue agora? Resta-nos deixar no ar a questão, aludindo ao paradoxo da omnipotência: conseguirá Ele, doravante, criar um disco tão soberbo que se supere a si próprio?
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
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