DISCOS
Animal Collective
Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished / Danse Manatee
· 05 Nov 2003 · 08:00 ·
Animal Collective
Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished / Danse Manatee
2003
FatCat


Sítios oficiais:
- FatCat
Animal Collective
Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished / Danse Manatee
2003
FatCat


Sítios oficiais:
- FatCat
Animal Collective, ou a tradição como linha fronteiriça, susceptível de ser galgada em audições contínuas. O epíteto serve "Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished" (2000) do ponto de vista formal. Serve também “Danse Manatee” (2001), o capítulo segundo. A transcendência na articulação de fragmentos, pedaços de nada que contêm tudo, presenteia o trabalho de conteúdo perfurado por apupos de estilo. Como um tufo de independência a desvincular Avey Tare, Panda Bear, Deaken e Geologist das tendências mais colegiais de fazer e acontecer música.

O livro abre-se para deixar à mostra os resíduos das páginas amarelas, um disco duplo que liberta folhas de Outono com nervuras a descoberto. Música do mundo que tresanda a desnorte, de incompatibilidades orgânicas, famigeradas, radicada nos partos inorgânicos de profundidade para lá da demarcação telúrica. Um techno minimal a provocar amuos nas pistas de dança pelo infanticídio do groove. Já no ano passado, os Sparks, excêntricos da pop, saqueavam o ritmo e cantavam oh no, where did the groove go? em “Lil’ Beethoven”.

Em Animal Collective, há uma circularidade psicadélico-individualista a morder o rabo das canções, afiliadas que estão à corrente do naufrágio turvo, com o anzol lançado a algumas milhas do porto. São traços cálidos a desferir as directrizes de cânticos naturais, guturais, odes sinfónicas a um punhado de terra. O afago do piano atravessa os filamentos do discurso das guitarras, coloca na estrutura uma densidade justaposta, irreverente. Se os Godspeed You! Black Emperor são o entroncamento do esqueleto político com o silêncio plasmático, Animal Collective é o barro que cola as partes e as sacode numa divagação migratória.

São carantonhas étnicas, coloridas, fantasmas ciganos, visões espectrais do futuro da pop. Anjos despidos, assexuados e magros abrindo asas múltiplas e deixando um rasto de cometa contra um firmamento cintilante. São arranhões, escoriações na voz e na instrumentação o que se ouve na edição da FatCat dos dois primeiros tomos do colectivo. Uma recuperação que vem remediar a pouco expansiva distribuição, nos respectivos anos de lançamento, fora dos Estados Unidos. A bestialidade humana em sagas luminosas numa Alegoria da Caverna acidental. O caminho dos visionários faz-se depois de colher os frutos das trevas, os rebentos da penumbra. A libertação dos grilhões da ignorância na ascensão que leva à argúcia e à construção de tronos de pó de uma realeza mortiça.

Apontar segmentos desta narrativa diletante equivale a rasgar páginas de um romance e jurar ter extraído à obra as passagens mais importantes. Escutar é um exercício de redundância, dispensa facilitismos pedantes e obtusos. A contundente compartimentação de sons em saquetas-expresso, de rápida degustação, é uma obstrução vulgar e grosseira no trabalho crítico. Querem saber um segredo? O espírito foi-se mas continua a assombrar os auditores do quarteto de Brooklyn. O animal jaz no subsolo, enfezado e baço, a lenda está escrita em disco compacto.
HĂ©lder Gomes
hefgomes@gmail.com
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