DISCOS
dEUS
In A Bar, Under The Sea
· 01 Nov 2003 · 08:00 ·
dEUS
In A Bar, Under The Sea
1996
Bang! / Island
Sítios oficiais:
- Island
In A Bar, Under The Sea
1996
Bang! / Island
Sítios oficiais:
- Island
dEUS
In A Bar, Under The Sea
1996
Bang! / Island
Sítios oficiais:
- Island
In A Bar, Under The Sea
1996
Bang! / Island
Sítios oficiais:
- Island
Não sei como fui parar ali. A uma praça, algures em Antuérpia, Bélgica. Mil e um músicos na rua. Têm os seus nomes escritos na testa: Kiss My Jazz, Moondog Jr, Zita Swoon, dEUS, Evil Superstars, Gore Slut, Soulwax, Millionaire, Dead Man Ray, entre outros. Gostam da boémia. Cerveja e cigarros alimentam os seus corpos durante as longas horas que passam por ali, de olhos esbugalhados, à espera que uma bondosa alma lhes deposite uma moeda no interior do boné manchado, enquanto improvisam cançonetas. Nem todos vivem numa mesma circunstância temporal. Alguns já morreram, uns deram lugar a outros, outros ainda tocam na rua. Mas todos, embora diferentes, foram criando uma cena. A Bélgica deixou de ser conhecida como a terra dos Vaya Con Dios. As atenções viraram-se para a rua.
Do lote de músicos na praça, há um que claramente se evidencia. Apresento-vos dEUS, o músico mais velho da cambada de boémios que canta, de manhã à noite, naquele espaço. Habita aqueles dois metros e trinta centímetros de calçada há doze anos. Começou por interpretar temas de Velvet Underground, Captain Beefheart e Violent Femmes. De 1991 até hoje, com as moedas que angariou das suas prestações, conseguiu chegar à editora Island e lançar quatro discos com temas originais. Worst Case Scenario (1994) foi o primeiro. Seguiu-se a experiência My Sister=My Clock (1995) e, posteriormente, In A Bar, Under The Sea (1996) e The Ideal Crash (1999). Apesar do reconhecimento, continua a gostar da rua, embora ultimamente não tenha comparecido tão frequentemente no local onde o descobri. O mundo ouviu-o. É justificável que se tenha que esticar e pegar nas malas para ir tocar o seu repertório – suficiente para editar um best of - numa praceta qualquer em Portugal, França ou Espanha.
Recuemos no tempo, até ao primeiro contacto com dEUS, em 1996. Assisto à primeira aparição do músico - Tom Barman, Stef Kamil Carlens, Jules De Borgher, Craig Ward e Klass Janzoons num corpo só – após a edição de In A Bar, Under The Sea. O alinhamento do espectáculo obedece à ordem do álbum. «I Don’t Mind Whatever Happens» abre o festim, dirigindo-nos, num abrir e fechar de olhos, a uma sensação próxima de escutar Tom Waits, desafinado e com álcool na alma, a cantar que não se importa com o que lhe possa acontecer. Não se sabe para onde poderá caminhar. Não será preciso esperar muito para se perceber que dEUS é uma caixinha de surpresas. «Fell Off The Floor, Man», espécie de «Smells Like Teen Spirit» em tons disco-punk e injectado por doses elevadíssimas de loucura e gozo, confirma a panóplia de referências do qual In A Bar, Under The Sea é dotado. Após a pop colorida de «Opening Night», dEUS apresenta-nos o seu lado mais cinzento. «Theme From Turnpike» nasce denso e soturno. Morre esquizofrénico e tribal, no segundo imediatamente anterior aos primeiros acordes suaves e beatlescos de «Little Arithmetics». Sofisticado e flexível é o dEUS que consegue percorrer em dois temas seguidos territórios tão imensamente distantes. Seja-lhe feita uma vénia pela proeza.
A melancolia também tem um lugar reservado neste sítio para o qual o velho músico nos guia, debaixo do mar. «Gimme The Heat», «Disappointed In The Sun» e «Nine Threads» serão potencialmente as melhores baladas alguma vez alcançadas no vasto território indie. Por outro lado, há um espaço especial reservado ao ruído bom no punk-pop «Memory Of A Festival» ou no noise-rock de guitarras arrastadas no tragicamente belo «Roses». A meio do concerto, alguém pede alguns minutos de experimentação e desvario. dEUS responde com «A Shocking Lack Thereof» e «Guilty Pleasures». O povo está rendido. Entre os dois temas, já havia convidado Dana Colley (na altura ainda Morphine, agora Twinemen) para tocar saxofone numa fabulosa melodia pop para não levar muito a sério. «Supermarket Song» é o nome da brincadeira. Às vezes, dEUS desce das suas velhas barbas à sua infância e inocência musical. Outras vezes, é o adulto mais triste que conheci. É daqueles senhores que, de forma muito singular (apesar de nunca negar os seus mestres), nos oferece pedaços de uma sabedoria alargada. É daqueles que se pode esperar um tudo ou um nada.
Dentro desta lógica, um nada inesperado como «Wake Me Up Before I Sleep» fecha a actuação, naquela praça, em Antuérpia. Boquiaberta, a multidão que o circunda adormece ao som de um planante e subtil tributo às guitarras Pink Floyd. Continuo a não saber como fui parar fisicamente ali, àquela praça, algures em Antuérpia. Mentalmente, confirmo, estive no melhor bar submarino que alguma vez me foi dado a conhecer. A ti, dEUS, «thank you for the roses».
Tiago CarvalhoDo lote de músicos na praça, há um que claramente se evidencia. Apresento-vos dEUS, o músico mais velho da cambada de boémios que canta, de manhã à noite, naquele espaço. Habita aqueles dois metros e trinta centímetros de calçada há doze anos. Começou por interpretar temas de Velvet Underground, Captain Beefheart e Violent Femmes. De 1991 até hoje, com as moedas que angariou das suas prestações, conseguiu chegar à editora Island e lançar quatro discos com temas originais. Worst Case Scenario (1994) foi o primeiro. Seguiu-se a experiência My Sister=My Clock (1995) e, posteriormente, In A Bar, Under The Sea (1996) e The Ideal Crash (1999). Apesar do reconhecimento, continua a gostar da rua, embora ultimamente não tenha comparecido tão frequentemente no local onde o descobri. O mundo ouviu-o. É justificável que se tenha que esticar e pegar nas malas para ir tocar o seu repertório – suficiente para editar um best of - numa praceta qualquer em Portugal, França ou Espanha.
Recuemos no tempo, até ao primeiro contacto com dEUS, em 1996. Assisto à primeira aparição do músico - Tom Barman, Stef Kamil Carlens, Jules De Borgher, Craig Ward e Klass Janzoons num corpo só – após a edição de In A Bar, Under The Sea. O alinhamento do espectáculo obedece à ordem do álbum. «I Don’t Mind Whatever Happens» abre o festim, dirigindo-nos, num abrir e fechar de olhos, a uma sensação próxima de escutar Tom Waits, desafinado e com álcool na alma, a cantar que não se importa com o que lhe possa acontecer. Não se sabe para onde poderá caminhar. Não será preciso esperar muito para se perceber que dEUS é uma caixinha de surpresas. «Fell Off The Floor, Man», espécie de «Smells Like Teen Spirit» em tons disco-punk e injectado por doses elevadíssimas de loucura e gozo, confirma a panóplia de referências do qual In A Bar, Under The Sea é dotado. Após a pop colorida de «Opening Night», dEUS apresenta-nos o seu lado mais cinzento. «Theme From Turnpike» nasce denso e soturno. Morre esquizofrénico e tribal, no segundo imediatamente anterior aos primeiros acordes suaves e beatlescos de «Little Arithmetics». Sofisticado e flexível é o dEUS que consegue percorrer em dois temas seguidos territórios tão imensamente distantes. Seja-lhe feita uma vénia pela proeza.
A melancolia também tem um lugar reservado neste sítio para o qual o velho músico nos guia, debaixo do mar. «Gimme The Heat», «Disappointed In The Sun» e «Nine Threads» serão potencialmente as melhores baladas alguma vez alcançadas no vasto território indie. Por outro lado, há um espaço especial reservado ao ruído bom no punk-pop «Memory Of A Festival» ou no noise-rock de guitarras arrastadas no tragicamente belo «Roses». A meio do concerto, alguém pede alguns minutos de experimentação e desvario. dEUS responde com «A Shocking Lack Thereof» e «Guilty Pleasures». O povo está rendido. Entre os dois temas, já havia convidado Dana Colley (na altura ainda Morphine, agora Twinemen) para tocar saxofone numa fabulosa melodia pop para não levar muito a sério. «Supermarket Song» é o nome da brincadeira. Às vezes, dEUS desce das suas velhas barbas à sua infância e inocência musical. Outras vezes, é o adulto mais triste que conheci. É daqueles senhores que, de forma muito singular (apesar de nunca negar os seus mestres), nos oferece pedaços de uma sabedoria alargada. É daqueles que se pode esperar um tudo ou um nada.
Dentro desta lógica, um nada inesperado como «Wake Me Up Before I Sleep» fecha a actuação, naquela praça, em Antuérpia. Boquiaberta, a multidão que o circunda adormece ao som de um planante e subtil tributo às guitarras Pink Floyd. Continuo a não saber como fui parar fisicamente ali, àquela praça, algures em Antuérpia. Mentalmente, confirmo, estive no melhor bar submarino que alguma vez me foi dado a conhecer. A ti, dEUS, «thank you for the roses».
tcarvalho@esec.pt
RELACIONADO / dEUS