DISCOS
Jim O`Rourke
All Kinds of People ~love Burt Bacharach~
· 27 Mai 2010 · 15:57 ·
Jim O`Rourke
All Kinds of People ~love Burt Bacharach~
2010
AWDR/LR2 / B.J.L.


Sítios oficiais:
- AWDR/LR2
Jim O`Rourke
All Kinds of People ~love Burt Bacharach~
2010
AWDR/LR2 / B.J.L.


Sítios oficiais:
- AWDR/LR2
O prodígio de sempre escolhe participantes a dedo para requintada e curiosa homenagem a um dos grandes compositores dos nossos tempos.
São perfeitos os rituais de descompressão que os japoneses descobriram para sanar o rigor dos dias de trabalho. Não é difícil, por exemplo, chegar à imagem do gestor que, já embriagado e no final de um dia pior, decide cantar no karaoke os êxitos amargurados de quando tinha 13 anos. Perante um disco em que Jim O’Rourke reúne um impressionante elenco de intérpretes (muitos japoneses, amigos e colaboradores habituais) para uma série de versões de Burt Bacharach (a Pop com tronco e membros), uma das ideias emergentes é a da família que alterna descontraidamente no karaoke até cada um esquecer o ofício que o ocupa das 9 às 5. Burt Bacharach como part-time de lazer.

É óbvio que o caso fica mais sério quando encontramos Thurstoon Moore (Sonic Youth), Glenn Kotche (influente baterista dos Wilco), Yoshimi P-We (Boredoms) e Haruomi Hosono (Yellow Magic Orchestra) entre os envolvidos. Mas este tributo serve sobretudo para destacar o cancioneiro de Burt Bacharach como preciosa matéria pop pronta para ser conjugada de toda a maneira e por todos (como indica o título). A própria música de Burt Bacharach, durante o seu longo auge, revela constante progresso (e charme) na forma como cada êxito se solta das amarras do mais próximo, embora esses tenham sido tantas vezes vendidos como comodidade fácil e prenda de recurso para o Natal.

Não é de estranhar que Jim O’Rourke reconheça em Burt Bacharach uma espécie de herói em termos de como ser flexível e brilhante na gestão de uma pop, que, independentemente dos desvios adoptados, termina sempre alinhada com o gosto das massas. Missão difícil. Jim O’Rourke, depois de ter acumulado o estatuto de semi-divindade na música improvisada, assumiu sem aviso que também era capaz de fazer música pop em Eureka. E os primeiros sintomas do flirt com Burt Bacharach surgem precisamente numa versão de “Something Big” incluída nesse disco. Versão essa que, além da pouca vergonha no refrão r&b, descarta por completo quaisquer restrições melódicas. Coragem. Além disso, Jim O’Rourke é desembaraçado ao ponto de também já ter reinterpretado o single (algo fracassado) “Viva Forever” das Spice Girls. No seguimento de todos esses indicativos, All Kinds of People encontra-o rendido às canções de Burt Bacharach numa apropriação que prefere sempre expandir em vez de desconstruir (o que o teria tornado mais óbvio e sujeito a comparações com o tributo duplo que a Tzadik, de John Zorn, no seu melhor estilo, havia dedicado ao compositor, na sua série Great Jewish Music).

Jim O’Rourke faz as escolhas certas. A quantidade de notáveis reunida em All Kinds of People ~love Burt Bacharach~ transforma-o num objecto instantaneamente curioso e digno de culto (ainda por cima lançado de surra no Japão, onde Jim reside de há uns anos para cá). Isto acontece também porque, além do realizador Jarmusch, O’Rourke é o outro Jim a que ninguém fixe deve dizer que não, sendo que os benefícios desse amontoado de coolness encontram-se expostos nas revelações mais improváveis do tributo. Por onde começar então nesta loja de doces? Thurston Moore a cantar e a produzir ruído em “Always Something There to Remind Me”, como se nunca tivesse abandonado o estado de espírito de quem se apaixona aos 9 anos. Yoichi Aoyama a recolher atenção para os seus discos com o falsete que faz de “You’ll Never Get To Heaven” o ponto alto do disco. Kahimi Karie, a voz de elevador num mundo perfeitamente sensual, determinada a consolidar a sua singularidade na infalível “Do you Know the Way to San Jose” (depois de ter feito também parte do ensemble que Otomo Yoshihide convocou para reformular Out to Lunch, de Eric Dolphy). Ou a diva Donna Taylor, que deu voz às composições de Bacharach no mundo real, a repetir o seu papel, mas desta vez acompanhada por uma super-banda destas andanças (com O’Rourke na guitarra e Tokiashi Sudoh no baixo). É muita goma para uma boca só.

Como vem sendo constatável, All Kinds of People é evidentemente luxurioso. Não estranharíamos se, na ressaca do seu conteúdo amigável, viesse outro tratado bem mais intricado no percurso de Jim O’Rourke, que parece estar a atravessar uma fase de revisão de influências, depois de, recentemente, ter alinhado numa viagem afectiva pela música norte-americana com The Visitor. Compreende-se que um maciço de imaginação e técnica como Jim O’Rourke também tenha de espairecer e sofrer alegremente novos danos pop num estatuto que é cada vez menos baseado no seu passado experimental. Jim O’Rourke é tão gigante como Burt Bacharach, devo arriscar. Acompanhá-lo numa tardinha tão animada como esta é uma daquelas oportunidades que não pode mesmo ser dispensada.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
RELACIONADO / Jim O`Rourke