DISCOS
Rangers
Suburban Tours
· 22 Mar 2010 · 09:47 ·
Rangers
Suburban Tours
2010
Olde English Spelling Bee


Sítios oficiais:
- Rangers
- Olde English Spelling Bee
Rangers
Suburban Tours
2010
Olde English Spelling Bee


Sítios oficiais:
- Rangers
- Olde English Spelling Bee
Glorificação low cost de tudo aquilo que reluz e deprime na realidade suburbana.
Os espaços verdes de Oeiras, proto-aldeias de Loures, paisagens industriais da Marinha Grande, o abandono do Barreiro ou os dormitórios silenciosos de Matosinhos. Da encenação recreativa ao sonambulismo rotineiro, existe algo que unifica toda a vivência suburbana. A omnipresença da cidade. Uma Meca vizinha obliterada por barreiras psicológicas e espaço vivo em constante aproximação e recuo, é ela que confere ao subúrbio a sua razão de ser. Centro gravitacional a minutos de distância, que num comprimento de onda pós-laboral constitui via para o entorpecimento. Ou para o conforto.

Joe Knight não saberá nada sobre estas vivências em particular, mas crescer numa área suburbana em Dallas, não será assim tão distante de uma infância em Massamá. Qualquer pessoa que tenha vivido (pelo menos parte) da sua infância nos anos 80 e princípios de 90, sabe o papel que os subúrbios tiveram em grande parte da produção cinematográfica, televisiva ou musical dessa época. Comummente aceite e recriado um pouco por todo o lado. Hoje, memórias deslocadas, cujo imaginário se dissolve entre o concreto e o alienado. O tédio enquanto catalisador comum. Sob o nome de Rangers, Joe Knight dá som a toda esta vivência sobre o princípio da memória. Para musicar a rotina quotidiana.

Deslocado temporal e espacialmente, Suburban Tours é um disco de viagem que reinventa espaços mentais onde a realidade física se confunde com o fluxo televisivo. Filtrado pela fita empoeirada que confere ao lo-fi uma existência vital. Neste plano, é possível traçar paralelos com projectos como Ducktails, Lamborghini Crystal ou Julian Lynch, todos eles devotos a uma recuperação dos anos 80 por via da memória refractada. Como em todos eles, a idiossincrasia derivada de uma vivência particular trata de lhe conferir uma identidade vincada. Rangers demarca-se de visões tropicais, da celebração da cultura trash, aproximações à new age ou fritadeira cerebral derivada das drogas. Sobre Suburban Tours paira uma aura de cinzentismo particular, como se o smog citadino fosse uma ameaça latente tão reconhecível quanto aceite com naturalidade.

Neste ponto, são reconhecíveis em Suburban Tours algumas influências, regra geral, ausentes dos seus pares norte-americanos. Nomeadamente, um flirt com a música britânica nascida nos resquícios do pós-punk. O phaser e chorus da guitarra de Robin Guthrie ou os rendilhados enevoados dos Felt e um uso abusivo do reverb na caixa-de-ritmos que confere a tudo isto uma carga tensa, quase marcial. Melodias nostálgicas tecidas em torno de linhas de baixo devedoras daquele funk slow motion tão em voga nas bandas sonoras de adolescentes (o divertimento domingueiro de “Bel Air” é prova cabal disso mesmo).

Deixando de lado as colagens de Street Smell ou Low Cut Fades, Suburban Tours compõe-se de 11 miniaturas que recriam com uma displicência cool tudo aquilo que as tours suburbanas podem ser. Inevitavelmente com caminho até à cidade. Escape mental que emula o passeio de BMX da infância, a apatia pós-laboral, a tranquilidade do fim-de-semana ou a velocidade da manhã. Tudo coberto por uma atmosfera de reconhecimento estranho. A ressonância emocional será meramente especulativa, tratando-se de algo tão evocativo no seu ascetismo particular.

Numa música tão fixada a um imaginário (mesmo que sujeito à mais diversa empatia), os títulos das canções, poderão servir enquanto directrizes. “Out Past Curfew” e “Dome City” são a fuga de e para a cidade. O recolher obrigatório sobre as luzes ténues e toda a melancolia da vida citadina ao adormecer. Luzes, que na leveza sonhadora de “Airport Lights” ecoam um desejo de partir transversal. Contínuo com a letargia nocturna de “Glen Carin”, onde aquele piano insistente enxertado directamente de um separador da RTP 2 enfatiza o tédio subliminar em frente à televisão num noite de insónia. Referências mais ou menos directas à música “papel de parede” que se tornam parte integrante de algo vindo d`A Vigília da Noite com direito a solo de soft-rock. A guitarra inofensiva de Nile Rogers que em “Golden Triangles” dá azo a uma serenidade domingueira. O conforto do sofá versus a vida no exterior.

“Summertime Is Off / I Don’t Wanna Go Out”, canta Knight sob uma manta de efeitos em “Deerfield Village”. O exterior que resplandece em “Woodland Hills” e “Brooke Meadows”, com a praia mesmo ali ao lado. Transfiguração real daquilo que, em última análise, constitui a essência de Suburban Tours. O isolamento a servir enquanto catalisador para uma fuga possível ao falhanço dos subúrbios. Falhanço implícito num artificialismo estéril, alienante e desajustado de qualquer naturalismo. Suburban Tours celebra a vida possível em toda a apatia circundante, com o desenrasque necessário para que tudo isso possa fazer sentido. Acontecer.

Depreende-se facilmente pela própria escrita que está subjacente uma componente imagética vincada. Pouco empírica, é objecto do poder de indução que será o maior valor de Suburban Tours. A transversalidade que, entre as VHS do Matt Hoffman, policiais de acção, prédios feios, e uma necessária dose de imaginação que faça da dormência algo útil. A simplicidade embutida na rotina e o desejo de a extravasar nos mais pequenos gestos. Suburban Tours é isto, de um modo gloriosamente fidedigno.
Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
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