DISCOS
Evangelista
Hello, Voyager
· 22 Abr 2008 · 08:00 ·
Evangelista
Hello, Voyager
2008
Constellation / Sabotage


Sítios oficiais:
- Evangelista
- Constellation
- Sabotage
Evangelista
Hello, Voyager
2008
Constellation / Sabotage


Sítios oficiais:
- Evangelista
- Constellation
- Sabotage
Anti-diva recolhe chama ao inferno e convoca Quinta Grande Armada Canadiana para atear fogo maldito por toda a parte.
Quando um rato é engolido por uma jibóia, mais vale aproveitar a sua própria morte como um espectáculo, do que preocupar-se demasiado em enumerar todos os aspectos inconvenientes da digestão nas entranhas do réptil. Deve esse comportamento servir de exemplo a quem se decida aventurar por entre a mata densa de Hello, Voyager, calamitoso tour de force e catedral de sinistralidade arquitectada por uma Carla Bozulich claramente disposta a morrer pelo disco que criou sob o desígnio de Evangelista (título da sua estreia em nome próprio pelo selo canadiano Constellation). Tal convicção desalmada sente-se a um disco que faz com que a complexidade feminina invocada muito se assemelhe ao interior de uma baleia faminta, cujas paredes interiores mais definidas ficam quando a audição se aproxima delas como vela curiosa. As alegorias (animais) ficam-se por aqui, mas voltarão à carga mais adiante para descrever um empreendimento vincadamente dedicado à construção algo faraónica (elogio) de alegorias de dimensão impressionante.

Antes de mais, convém referir que o porte dos músicos convocados para engendrar a grandiosidade de Hello, Voyager obriga à consulta das credenciais e argumentos acumulados por Carla Bozulich. Esses são bastantes e suficientes para que a devida atenção seja dedicada à artista nova-iorquina – ela que alinhou já em colaborações com gente tão inspirada como Wayne Kramer, Thurston Moore (quem mais?), Okyyung Lee, Nels Cline (membro dos Wilco que participa também no presente disco). Mais impressionante que isso talvez só mesmo o facto de Carla Bozulich ter garantido a participação da lenda Willie Nelson num disco que, através de versões, repetia na íntegra o alinhamento de Red Headed Stranger, originalmente concebido pela própria lenda country. Para melhor enquadramento, pode-se mesmo dizer que Bozulich se encontrará ao lado (e não na sombra) de Jarboe (clarão feminino dos Swans) e Lydia Lunch (com quem já colaborou) numa improvável Trindade de Anti-Divas associadas ao germinar do pós-punk/no wave de início da década de 80.

A favor da sua capacidade de persuasão, Carla Bozulich conta também com uma voz de um alcance dramático que, por comparação, torna redundantes os uivos de algumas vocalistas descompensadas que “estrilham” actualmente na praça musical. O gospel está do lado de Bozulich: encontra-se omnipresente no aspecto áspero e herético do seu tom desgraçado, nos segredos involuntariamente expostos por efeito de transe, no reluzir da guilhotina que decepa e divide em actos as tragédias de rock rastejante e climático como “Winds of Saint Anne”. Pronto a servir como arcaboiço instrumental para tudo isso, nada mais nada menos do que parte substancial do colectivo Thee (A) Silver Mt. Zion, que bem tenta camuflar a sua reputação com a constante mudança de nome, mas que sempre acaba por denunciar de que fibra é feita o mais demolidor músculo e possesso fatalismo da Montreal que colocou a estabilidade do mundo em risco com a ascensão dos Godspeed You Black Emperor!. Escute-se “Smooth Jazz”, marcha irreversivelmente sedenta de sangue virgem, para entender que o mais glorioso pós-rock canadiano encontra-se ainda longe do coma.

Entretanto, voltemos de novo às alegorias para explicar que os ambientes doentios de Hello, Voyager propiciam a quebra de vitrais espirituais a cada vez que as guitarras esganam a incómoda solenidade de um Hello, Voyager que persiste em não acomodar-se aos moldes pós-rock que se poderia esperar dele (é, afinal, um disco incidente numa voz fenomenal). De certo modo, Hello, Voyager serve como prenúncio de todos os sons e vapores de um submundo ainda por emergir – reflecte antecipadamente a agonia das almas humanas aprisionadas em corpos de animais assexuados (futuro bestial antecipado pelo seu artwork). É disco que, sempre que possível, efectua a sublimação de crescendos e decrescendos com vista à cristalização de um maravilhoso universo turvo que, pelo que parece, poderia apenas ser projecção a cargo de Carla Bozulich.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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