DISCOS
Murcof
Cosmos
· 08 Out 2007 · 08:00 ·
Dado histórico de relevância maior: Murcof é o primeiro mexicano a elaborar a partir do espaço o quarto capítulo de uma saga que reclama toda a atenção possível.
A 26 de Novembro de 1985, Rodolfo Neri Vela antecipava-se a Fernando Corona ao ser o primeiro mexicano no espaço ao serviço da missão que o colocava a bordo do Challenger. O senhor Corona, que responde por Murcof na mais alta roda da electrónica transcendente, teria apenas quinze anos nessa altura de grande euforia vivida no México, que se encontrava prestes a receber o campeonato do mundo de futebol no ano seguinte a esse. Uns bem medidos quinze anos é quanto basta ao traçar de um plano para o futuro, à formação mental dos alicerces que eventualmente suportarão uma obra que ocupa metade de uma vida. Sem se saber ao certo em que altura exacta vislumbrou os contornos da saga em que se haveria de aplicar, a verdade é que Murcof traçou para si e para as letras que compõem o seu nome um percurso sustentado em discos em que a electrónica efectua a gestão multifuncional de componentes próprias do género e outras sugestivamente clássicas no seu teor (nomeadamente a cada vez mais determinante acústica do piano e instrumentos de cordas). A electrónica é o meio e não o fim (que, por enquanto, ainda é miragem).
E parece paradoxal expô-lo do seguinte modo, mas o facto de ser tão assombroso o empreendimento Murcof deve-se principalmente ao sentimento de incrédulo que se abate sobre alguém que coloque a si mesmo a seguinte questão: como é possível que uma estética musical tão vincada, na sua composição híbrida (cada vez mais) entre a electrónica e o clássico, consiga superar honrosamente em disco cada desafio colocado por um destino minado de factores aleatórios? Afinal, o que constitui o esfíngico nome de Murcof se não uma força criativa que regista em tomos as suas interpretações presentes, de maneira a melhor interpretar e resolver as incertas ocasiões seguintes. Recapitule-se a influência que possam ter exercido sobre a identidade Murcof os ocasos documentados em disco: Martes mereceu tal título por ter sido iniciado a uma quarta-feira, Utopia acumula remisturas de estetas a que não se anteciparia tal admiração, Remembranza adopta uma toada nostálgica após o falecimento da mãe do próprio Fernando Corona e, agora, Cosmos dobra a divisão silábica em consonância com a mudança do seu autor do México para Barcelona (e atenção que o C pode também ser de Catalunha). Elaborado pela mão de alguém nascido num dos países que mais convida à amnésia, Cosmos é disco que escolhe o espaço como destino evasivo e método terapêutico para desintegrar tudo o que de doloroso possa ainda ter sobrado ao mais pessoal Remembranza.
Em era de livre fruição por parte de maximizers bandidos (nu-ravers e praticantes de house que têm feito da dança uma nova missa), quem tem assimiladas as mais sonantes bandas-sonoras de ficção-científica é rei – sendo que, nesse aspecto, os ensinamentos aplicados aqui podem ter partido de Jerry Planeta dos Macacos Goldsmith, Cliff Martinez ou – mão ao fundo do baú - Chumei Watanabe. E, a partir de Cosmos, algo me diz que Murcof necessitaria apenas da máquina publicitária dos Daft Punk para manter sob transe plateias inteiras de aficionados de sensações magnas. Ou assim seria se Murcof optasse por reproduzir e repetir em loops viciosos o opus meteórico que estala – e bate forte – após seis minutos e quarenta segundos de crescendo mantido pela inicial “Cuerpo Celeste”: na verdade, basta soar quatro (curtas) vezes aquilo que parece ser um órgão galáctico para que se verifique um encontro imediato de terceiro grau entre a audição e um dos grandes momentos do ano registado em disco. Coisa para eriçar e tornar palha-de-aço o bigode de Richard Dreyfuss ao jeito daquelas alturas em que testemunha os milagres fabricados por Steven Spielberg. A grandeza do madrugador ponto alto de Cosmos é tal que quase obriga a que se recue até Arrhythmia dos extintos Anti-Pop Consortium para observar um tema de calibre e impacto comparável: “Mega” e o clímax de ópera que proporciona a um disco que – brilhantemente – acumula o que de mais intricado e “esquizóide” pode produzir um disco de hip-hop futurista. Está visto que a megalomania é um hábito saudável quando alguém procura antecipar o futuro.
Mas nem só de momentos ostensivamente monumentais se faz um Cosmos que sabe bem como encadear referências ao que lhe antecede e remexer interiormente um silêncio espacial que deixa de o ser à medida que se eleva discretamente um tumulto feito de texturas sem medida. É nesse equilíbrio que provavelmente reside a sua força. Enquanto segundo acto da peça, “Cielo” quase parece descrever aquilo que seria a superfície minimalista de Remembranza reflectida na mais polida porção vidrada de um capacete de astronauta (em missão espacial mexicana). Enquanto que os colossos siameses “Cosmos I” e “II” efectuam o lógico amortecimento que deve intercalar os picos mais dramáticos de Cosmos. Fazem-no com eficácia equivalente: suspendendo em vácuo drones que se consomem por sobreposição contínua, provocando elipses que dificultam a distinção entre as vagas hipnóticas formadas pela oscilação da secção de cordas.
Cosmos reclama a que alguém, na eventualidade de se render, o faça de barriga para cima de forma a melhor assistir ao espectáculo típico de planetário que proporciona o disco. E bem dita seja a capacidade de persuasão de quem convenceu Fernando Corona a aumentar o formato deste seu trabalho de EP para álbum. Só se podia assumir de corpo inteiro este ponto altamente favorável à seguinte confirmação: Murcof representa actualmente um dos mais flagrantes exemplos no que respeita à vontade de conduzir em frente a electrónica, sem que isso deixe de constituir Obra com O grande (e o O vem já a seguir). Que melhor maneira de renovar esse voto de ambição do que apontá-la à escala galáctica, tornando-a num tratado de astrologia? Haja coração para Cosmos. Tem tudo para engrossar consideravelmente a alínea c) das listas dedicadas ao que de melhor revelou 2007.
Miguel ArsénioE parece paradoxal expô-lo do seguinte modo, mas o facto de ser tão assombroso o empreendimento Murcof deve-se principalmente ao sentimento de incrédulo que se abate sobre alguém que coloque a si mesmo a seguinte questão: como é possível que uma estética musical tão vincada, na sua composição híbrida (cada vez mais) entre a electrónica e o clássico, consiga superar honrosamente em disco cada desafio colocado por um destino minado de factores aleatórios? Afinal, o que constitui o esfíngico nome de Murcof se não uma força criativa que regista em tomos as suas interpretações presentes, de maneira a melhor interpretar e resolver as incertas ocasiões seguintes. Recapitule-se a influência que possam ter exercido sobre a identidade Murcof os ocasos documentados em disco: Martes mereceu tal título por ter sido iniciado a uma quarta-feira, Utopia acumula remisturas de estetas a que não se anteciparia tal admiração, Remembranza adopta uma toada nostálgica após o falecimento da mãe do próprio Fernando Corona e, agora, Cosmos dobra a divisão silábica em consonância com a mudança do seu autor do México para Barcelona (e atenção que o C pode também ser de Catalunha). Elaborado pela mão de alguém nascido num dos países que mais convida à amnésia, Cosmos é disco que escolhe o espaço como destino evasivo e método terapêutico para desintegrar tudo o que de doloroso possa ainda ter sobrado ao mais pessoal Remembranza.
Em era de livre fruição por parte de maximizers bandidos (nu-ravers e praticantes de house que têm feito da dança uma nova missa), quem tem assimiladas as mais sonantes bandas-sonoras de ficção-científica é rei – sendo que, nesse aspecto, os ensinamentos aplicados aqui podem ter partido de Jerry Planeta dos Macacos Goldsmith, Cliff Martinez ou – mão ao fundo do baú - Chumei Watanabe. E, a partir de Cosmos, algo me diz que Murcof necessitaria apenas da máquina publicitária dos Daft Punk para manter sob transe plateias inteiras de aficionados de sensações magnas. Ou assim seria se Murcof optasse por reproduzir e repetir em loops viciosos o opus meteórico que estala – e bate forte – após seis minutos e quarenta segundos de crescendo mantido pela inicial “Cuerpo Celeste”: na verdade, basta soar quatro (curtas) vezes aquilo que parece ser um órgão galáctico para que se verifique um encontro imediato de terceiro grau entre a audição e um dos grandes momentos do ano registado em disco. Coisa para eriçar e tornar palha-de-aço o bigode de Richard Dreyfuss ao jeito daquelas alturas em que testemunha os milagres fabricados por Steven Spielberg. A grandeza do madrugador ponto alto de Cosmos é tal que quase obriga a que se recue até Arrhythmia dos extintos Anti-Pop Consortium para observar um tema de calibre e impacto comparável: “Mega” e o clímax de ópera que proporciona a um disco que – brilhantemente – acumula o que de mais intricado e “esquizóide” pode produzir um disco de hip-hop futurista. Está visto que a megalomania é um hábito saudável quando alguém procura antecipar o futuro.
Mas nem só de momentos ostensivamente monumentais se faz um Cosmos que sabe bem como encadear referências ao que lhe antecede e remexer interiormente um silêncio espacial que deixa de o ser à medida que se eleva discretamente um tumulto feito de texturas sem medida. É nesse equilíbrio que provavelmente reside a sua força. Enquanto segundo acto da peça, “Cielo” quase parece descrever aquilo que seria a superfície minimalista de Remembranza reflectida na mais polida porção vidrada de um capacete de astronauta (em missão espacial mexicana). Enquanto que os colossos siameses “Cosmos I” e “II” efectuam o lógico amortecimento que deve intercalar os picos mais dramáticos de Cosmos. Fazem-no com eficácia equivalente: suspendendo em vácuo drones que se consomem por sobreposição contínua, provocando elipses que dificultam a distinção entre as vagas hipnóticas formadas pela oscilação da secção de cordas.
Cosmos reclama a que alguém, na eventualidade de se render, o faça de barriga para cima de forma a melhor assistir ao espectáculo típico de planetário que proporciona o disco. E bem dita seja a capacidade de persuasão de quem convenceu Fernando Corona a aumentar o formato deste seu trabalho de EP para álbum. Só se podia assumir de corpo inteiro este ponto altamente favorável à seguinte confirmação: Murcof representa actualmente um dos mais flagrantes exemplos no que respeita à vontade de conduzir em frente a electrónica, sem que isso deixe de constituir Obra com O grande (e o O vem já a seguir). Que melhor maneira de renovar esse voto de ambição do que apontá-la à escala galáctica, tornando-a num tratado de astrologia? Haja coração para Cosmos. Tem tudo para engrossar consideravelmente a alínea c) das listas dedicadas ao que de melhor revelou 2007.
migarsenio@yahoo.com
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