Seis discos de 2006 em 2007: uma jornada intemporal e aleatória pelo mundo da electrónica.
· 30 Jan 2007 · 08:00 ·

Aviso: esta recolha serve o único propósito de resgatar a 2006 alguns dos discos de electrónica que por uma ou outra razão (nenhuma delas é o esquecimento) não foram abordados pelo Bodyspace no ano da sua edição. Não é um top nem uma lista, não obedece a categorizações nem a clientelismos. É um olhar que segue de perto e atentamente a ideia romântica de descoberta de discos “fora do tempo” (que nestas coisas meia dúzia de meses parece muito tempo), sem para isso apresentar grandes desculpas ou arrependimentos. É uma viagem turbulenta, é verdade, cheia de curvas e lombas, neve e chuva, sol e calor, mas nem por isso ilegítima. Parece agora óbvio que alguém tinha de a fazer. André Gomes

© Teresa Ribeiro


Ezekiel Honig Scattered Practices
2006
Microcosm Music

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Ao contrário da sua capa, Scattered Practices não é um disco de fruição imediata. O compositor nova-iorquino Ezekiel Honig, inspirado por The Practice of Everyday Life do filosofo francês Michel de Certeau criou dez peças onde melodias que se esfumam, paisagens frágeis se adensam e onde os pormenores ganham especial protagonismo. Nas construções de Ezekiel Honig penetram elementos e sons da vida diária (como a chuva, por exemplo), fazendo deste disco um registo eminentemente conceptual. Apesar de nem todos os momentos serem tão bem conseguidos quanto a teoria poderia supor, Ezekiel Honig consegue um disco coerente na sua forma e com ocasiões de peso: “Homemade Debris”, peça central do disco (em termos de tempo, com quase dez minutos, e em termos estéticos), exemplo maior dessa congruência e harmonia de Scattered Practices. Pacífica e branda, “Homemade Debris” vai colhendo elementos dispersos mas nunca se transforma ou agiganta. Antes, desenvolve-se sem sair do seu útero e esta é a ideia que melhor resume os intentos de Ezekiel Honig neste disco. Este é um registo emocionalmente tímido e contido, o que é ao mesmo tempo trunfo e defeito. Em todo o caso, Scattered Practices é um retrato fiel de uma certa vida real (assim como de memórias que acreditávamos perdidas); uma que nem sempre se faz de momentos positivos, mas também de instantes menos bons. André Gomes

Freiband Leise
2006
Crónica

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Quando a Crónica parecia prestes a garantir uma escuta estável e sedativa, a partir de um disco criado com base num contexto terno e familiar, eis que Leise veda abruptamente o estabelecimento de qualquer empatia imediata entre a presença electro-acústica de Freiband (projecto excepcional do holandês Frank de Waard) e de quem o escuta. Além de representar o seu terceiro disco, Freiband é também um conceito mutável em performances ao vivo e em sessões várias (inclusive uma cedida à recomendável rádio VPRO de Amsterdão). Assim sendo, Freiband respeita essencialmente à flexibilidade que podem assumir, no processamento em laptop, os sons captados à filha de três anos, Elise de Waard (note-se o anagrama do título), que teve à sua disposição instrumentos musicais e não-musicais normalmente associados ao trabalho do mentor paternal no projecto Kapotte Muziek: pedaços de metal, papel, paus, plásticos e outra tralha. Fica-se pelo contexto e associação geracional o que de mais fácil se possa descobrir por aqui, pois Leise representa indubitavelmente das mais desafiantes escutas com o selo Crónica. São de digestão demorada os crípticos desafios a que Freiband dá forma com crepitantes detritos digitais, elementos electro-acústicos e inconstantes vagas mecanizadas em loop. Alguns exercícios relembram o vácuo em efervescência da no-input board de Toshimaru Nakamura, outro – “Daisee” – estabelece um paralelismo anómalo entre um contínuo horizonte ambient e uma insignificante ameba de digitália que não chega a abandonar o seu ponto de partida. Miguel Arsénio

James Holden Idiots Are Winning
2006
Border Community

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Estreou-se em 1999 com o maxi “Horizons / Pacific". Tinha 19 anos e logo na altura foi considerado um prodígio. Seguiram-se uma mão cheia de originais, remisturas, álbuns de mistura, colaborações. Chegou mesmo criar a sua própria editora: a Border Community. Etiqueta onde soam agora nomes como The MFA ou Nathen Fake. Entre a robustez fria do techno minimal e uma house progressiva e distorcida, James Holden cedo aprendeu as técnicas que melhor traduziriam a sua forma de ver o universo da música de dança electrónica. Os EP´s foram consensuais na abordagem transversal das tipologias de Detroit e Chicago, na construção melódica abstracta em colisão com os impulsos nervosos de uma electrónica em ponto de ebulição. Tudo características que se mantêm num disco de estreia curiosamente ambíguo.

Idiots Are Winning é James Holden. Disso não há dúvidas. O seu estilo está lá, único, abstracto, mas agora com alguns desvios que levantam dúvidas sobre o propósito da operação. O mercado está cheio de elogios à idiotice mas Holden também não consegue inverter isso de forma retumbante através das suas experiências. Há momentos de soberba clarividência e de apurado gosto pela "ciência" da programação ("Lump" ou "10101") mas também nos apercebemos de momentos de redundância estética, de ideias perdidas - senão mesmo díscolas - ou até por completar ("Idiot Clapsolo" ou "Quiet Drumming"). Não é uma estreia em longo formato decepcionante, mas esperava-se um pouco mais de quem sabe. Rafael Santos

Luomo Paper Tigers
2006
Huume Recordings / Flur

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Vladislav Delay ou Uusitalo são nomes possíveis para um só homem: Sasu Ripatti. O produtor finlandês que além dos projectos paralelos – com diversos alter-egos – talvez seja mais conhecido das massas por Luomo. Nome que em 2000 saltou para a primeira linha da electrónica com Vocalcity, uma miscelânea house/electro-pop, despida e reduzida ao essencial onde os bleeps frios da electrónica sobrepostos por melodias quentes e etéreas tingiam o amor com beleza sedutora e espontânea. Desde logo houve, como é habitual quando algo de novo vem ao mundo, quem decidisse chamar de micro-house à sonoridade única do registo. Diga-se que não era para menos. Luomo (o mesmo passando-se com outros projectos seus) encantou e habituou-nos ao seu estilo de produção minimalista, cuidada e pensada. Mesmo quando os desalinhamentos sonoros pareciam sugerir erraticidade ou os longos minutos indicar falta de melhores propostas para preenchimento do tempo e do espaço, as ideias defenidas e as certezas do caminho traçado estavam lá para quem quisesse apreciar.

Sasu Ripatti é normalmente original, pragmático, trabalhador e, no essencial, um estudioso das novas linguagens da electrónica, mas também tem os seus dias menos inspirados, como parece o caso do terceiro álbum de originais: Paper Tigers. Diga-se que depois de The Present Lover pouco mais haveria para acrescentar à sonoridade do registo de estreia, mas a forma como Luomo nos voltava em 2003 a embalar a alma, encantava e seduzia relegando para outra oportunidade a pertinência da sua música. Mas à terceira torna-se difícil ignorar a forma um tanto repetitiva de esquematizar cada quadro sonoro. "Let You Know" e "Good To Be With" ou “Cowgirl” chegam mesmo a desiludir e a aborrecer quem tinha esperanças de encontrar alguma mensagem nova. A voz de Johanna Ilvanainen ou de Antye Greie (aka AGF) cumprem a sua função ao atribuírem o encanto habitual aos beats, clicks, bleeps da produção maquinal e fria de Luomo. Mas nada de substancial ou pertinente desce á terra com a chegada de Paper Tigers. Talvez o excesso de confiança na programação tenha sido o principal problema, pelo menos no caso deste disco. Rafael Santos


Soylent Green La Forza del Destino
2006
Playhouse / Flur

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Numa palavra: economia. Roman Flügel, nesta sua morada criativa, não toca uma nota a mais, não deixa deslizar o dedo para soltar só mais um beat. É tudo na medida certa. Este disco é como um bloco de notas sobre o deve e haver da house, rabiscado nas franjas de um techno cerebral que não cancela os sentidos. Longe da demência do clube xunga que debita som por atacado, Soylent Green cedo se desembaraça da narcose futurista. À terceira faixa, “Cold Showers”, percebemos que o que gosta mesmo é de brincar aos clássicos. Nada contra – ou não fosse o tipo um apreciador da série B (Soylent Green é um thriller de ficção científica do início dos 70). Por aqui, nada aparece manietado. Não se adivinha aqui a secreta vontade de tresandar a pista de dança. Daqui resulta uma dieta electrónica, com programações crepitantes e teclas pinceladas em vez de marteladas. Helder Gomes


Uusitalo Tulenkantaja
2006
Huume Recordings / Flur

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Há muito que techno-dub rima com Vladislav Delay, ou melhor, com a sua encarnação enquanto Uusitalo. Nascido em Oulu, na Finlândia, o músico tem vários alter-egos e é um dos mais fascinantes e arejados executores de música electrónica. Este Tulenkantaja cumpre os requisitos mínimos de um disco de filiação na música de dança vagante – aquela que abre espaço para contaminações diversas. Mas não se fica por aí. Ou talvez, até fique e seja essa a sua maior virtude. Cozinhado a lume brando com linhas de baixo encorpadas, batidas que largam em retirada quando começam a entranhar-se na pele, lirismo de ponta atirado ao coração em degelo, é um disco de pequenas descobertas e de constantes regressos. E é também o trabalho mais íntimo de Delay: o booklet tem fotos tiradas na Finlândia e o disco excertos da prosa do pai e da avó, que foi membro de um grupo literário radical nos anos 40. Helder Gomes


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