Jingle Bells: Algumas propostas para um Natal Diferente
· 23 Dez 2006 · 08:00 ·

O Gary Coleman e o Kenny G lançam à volta de 20 por ano. São discos de natal. Mais do que o single - os Gemini de Tó Zé Brito tinham um quando ele ainda não estava obcecado com detonar bombas dentro de todos os computadores pessoais -, os álbuns de natal são a banda sonora perfeita para esta época do ano. Mas os melómanos tendem a ignorá-los. Haverá algo mais bonito que temas de natal? Por amor de Deus, o "Do They Know It's Christmas" versão anos 2000 tinha o Thom Yorke, o Jonny Greenwood, os dois gajos dos Darkness - o dos falsetes e do spandex e o dos solos azeiteiros - e o Dizzee Rascal na mesma faixa! Caramba, e é um feito inigualável. Sufjan Stevens, senhor de várias canções sobre, basicamente, tudo - basta pegar num sítio ao calhas no mapa e escrever -, lançou recentemente uma caixa de discos de natal, reunindo canções de EPs e inéditos, e surpreendeu. O homem podia escrever sobre qualquer coisa e fazer sentido, mas calhou escrever sobre o natal. Este(s) disco(s) e o resto vistos sob a lupa do Bodyspace. Rodrigo Nogueira

© Teresa Ribeiro

Sufjan Stevens Songs for Christmas
2006
Asthmatic Kitty

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A veia criativa de Sufjan Stevens deixou de parte por uns momentos os estados dos Estados Unidos e dedicou-se à época do senhor gordo de barbas brancas, das prendas e da árvore decorada de luzes, dos doces e de comidas fartas e da coca-cola. A cruzada de gravar 5 discos de canções de e para o Natal começou em 2001 e chegou até 2006 – falhou apenas em 2004. Noel: Songs for Christmas, Vol. I, gravado em Dezembro de 2001; Hark!: Songs for Christmas, Vol. II, gravado em Dezembro de 2002; Ding! Dong!: Songs for Christmas, Vol. III, gravado em Dezembro de 2003; Joy: Songs for Christmas, Vol. IV, gravado em Dezembro de 2005; e finalmente Peace: Songs for Christmas, Vol. V, gravado em Junho do ano que agora termina. E são precisamente estes cinco discos que agora são editados, em tempo oportuno, numa mega caixa com vários extras: autocolantes de Natal, notas de rodapé e pequenos contos de Sufjan Stevens, um ensaio de Natal original da autoria de Rick Moody, um vídeo musical animado assinado por Tom Eaton, ilustrações, letras dos temas para cantar em conjunto com o disco, entre outras coisas.

O projecto que começou de forma algo masoquista para que Sufjan Stevens pudesse apreciar o Natal de uma forma mais forte, transformou-se numa deliciosa apropriação dos clichés natalícios, o que o levou a gravar inclusive versões de grandes êxitos como “Jingle Bells”, “Silent Night” ou “We Three Kings”. Diga-se que é preciso grande paixão pela época para partir para versões de qualquer um dos temas atrás mencionados. Mas por incrível que possa parecer Sufjan Stevens consegue pegar em qualquer dos temas já conhecidos que pululam em Songs for Christmas e sair delas com distinção, sem que palavras como “enjoativo” ou “insuportável” lhe sejam atiradas à cara. Songs for Christmas é um conjunto impressionante de canções de Natal, onde clássicos convivem saudavelmente com temas originais. É o disco em que Sufjan Stevens se reconcilia finalmente com o Natal; é o disco perfeito para interromper a qualquer altura aquela compilação de Natal de CD ou vinil riscado que insiste em atormentar o juízo a quem ainda o tem. Tem a sensibilidade única de Sufjan Stevens, o seu imaginário, a sua delicadeza, a beleza das suas composições. O Natal musical está para sempre assegurado. André Gomes


Horkeškart Live in Solitude
2006
Amorfon

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A sério. Que antídotos contra os conflitos mundiais pode produzir uma risonha criança de nove anos que despertou em lençóis de veludo e adormecerá com o estômago forrado de gelado Carte D’Ôr? Apelar à paz mundial e fraternidade entre os homens é tarefa leviana quando se reside numa vizinhança onde nada acontece e a figura mais ameaçadora é o varredor de lixo com barba de dois dias. Além disso, o Natal já merecia ver renovados os seus apelos típicos. É isso mesmo – já não convence assistir ao coro de crianças no seu entoar de cânticos pacifistas quando os conflitos invocados se passam apenas além de um ecrã. Porque não tentar remediar o que é mais imediato e soletrar o nome de uma qualquer entidade educativa incompetente ao jeito orquestral de Sufjan Stevens? Os coros natalícios precisam de realismo e ambições concretas.

Porque não juntar quarenta e cinco jovens num coro com atitude intervencionista e permitir-lhes flexibilidade temática, independentemente disso implicar algumas doses de politicamente incorrecto? Pontos, louros e uma ovação de pé para o mérito e imprevisibilidade do coro Horkeškart, formado em Belgrado, Sérvia, no ano de 2000 e desde aí dedicado à reconstituição de temas de revolução e reconstrução da antiga Jugoslávia das décadas de 40 e 50, intercalados com versões de Kraftwerk (“Antenna”) e de obscuras glórias punk e hardcore dos balcãs, além de rendições curiosas de contos eróticos e canções de embalar coreanas Tudo isso inserido num projecto de sensibilização intitulado Your Shit – Your Responsability (A tua merda – a tua responsabilidade) que percorreu orfanatos, campos de refugiados e localidades várias na Croácia (a que acederam com passaportes Sérvios, formando o primeiro grupo de 50 pessoas a atravessar a fronteira nessas condições, desde 1991).

O que no papel virtual pode parecer um convite ao espalhafato, passa a ser mágico quando completamente destituído de pretensão ou carga panfletária. A militância da Horkeškart centra-se na prioritária necessidade de proporcionar deboche e diversão a um público que já se viu confrontado com o fracasso de todas as soluções políticas possíveis. Isso é genuinamente punk e escuta-se evidentemente à franqueza das vozes unidas em Live in Solitude. Está na altura de, por cá, o Coro de Santo Amaro de Oeiras começar a adaptar canções de Zeca Afonso e poemas de Almada Negreiros. Miguel Arsénio


VA ZE Christmas Record
2004
ZE Records

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Em 1981 e 1982 a ZE Records publicou o seu disco de Natal, sob a supervisão de Michael Zilkha, que para isso convocou todos os artistas americanos da editora. A lista de convidados garante desde logo uma visão particular e peculiar do natal: Alan Vega e os Suicide, The Waitresses, Nona Hendryx, Was (Not Was), James White, entre outros. Em 2004 a compilação foi reeditada com três novas faixas – uma delas assinada por Lio, Helena Noguerra & Marie France. Quase que é apenas necessário imaginar o Natal segundo os Suicide para entrar em ZE Christmas Record com a vontade que um pai Natal entra numa chaminé limpa em dia de entrega de prendas. Este é o Natal do mundo real, um Natal com o Diabo, um Natal em que tudo pode ir por água abaixo, um Natal onde surge uma muito própria “My Silent Night”, dada a movimentações electrónicas bizarras. "Things Fall Apart", onde dominam as guitarras, assinada por Cristina (deusa do New Wave e princesa da ZE Records), fala de um Natal algo forçado e de solidão: “My mother said / "I'm a survivor, I pull together Christmas every year" / "Something has to last" she said / "Once a year, let's have the past" / And then one year, To reach up high / To hang an angel from the tree / Became a painful thing / "Besides, she's lost a wing" my mother said / Things fall apart but they never leave my heart / Good Morning Midnight: it's Christmas...”; “Christmas Time In the Motor City", dos Was (Now Was) aborda os temas de desemprego e dos sem-abrigo. Por estas e outras razões, ZE Christmas Record parece assumir-se estoicamente como o disco de Natal dos menos afortunados. André Gomes


Low Christmas
1999
Kranky

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http://www.kranky.net

Ah, o Natal, época do ano simultaneamente maldita e maravilhosa, coisa ambígua que amolece os corações mas convida ao recolhimento, aos deprimentes balanços de final de ano. O mesmo poderia ser dito, quase sem tirar nem pôr, acerca dos Low, um trio de Duluth, Minnesota, especialistas na arte da tristeza enquanto fonte de beleza.

Em 1999, pouco depois de Secret Name, os Low lançaram Christmas, disco dedicado totalmente à quadra concebido como prenda para os fãs. Os seus oito temas dividem-se entre versões de canções tradicionais da época ("Silent night", "The little drummer boy") e originais que deveriam ser elevadas à categoria das primeiras - os clientes dos centros comerciais agradeceriam a renovação nas playlists.

No capítulo dos originais, "Just like Christmas" são os Low a piscar o olho à pop dos anos 60. Há sininhos, baixo saltitante e produção maximalista à Phil Spector, elementos que chocavam com o que o que os Low tinham feito para trás (hoje, depois de The Great Destroyer, já não surpreenderiam). Em "Long way around the sea", entramos em território mais familiar à banda: há um órgão mortiço ao fundo, guitarra acústica lentíssima e as vozes de Alan Sparhawk e Mimi Parker unidas no refrão, a esvaírem-se rumo a coisa nenhuma.

Já entre os standards, "The little drummer boy" inunda de delay os clássicos "pa rum pum pum pum". Um drone de órgão e uma guitarra extática contribuem para a solenidade hipnótica que caracteriza os momentos religiosos. Uma "Silent night" acústica fica-se pela reverência ao original - e fica-se muito bem.

Como os outros discos dos Low (todos eles óptimos), Christmas conforta e inquieta, aquece e arrefece o coração sem pré-avisos - não há cedências aqui à alegria simples. Não é um disco para um Natal seguro, mas capta melhor a essência da época e as suas contradições do que a maioria dos discos do género. Pedro Rios


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