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© Teresa Ribeiro |
Não faria muito sentido apelidar esta rubrica de “Novo hardcore com ar de porco #2”, na continuidade do primeiro tomo dedicado ao irmão mais passional do punk. A matriz anda por aqui – oculta pelo manto cinza dos Genghis Tron e bem presente no caso dos Spacehorse. Contudo, os primeiros levaram-na à picadeira e o bicho que daí saiu meio-vivo aparenta apenas traços distorcidos do hardcore a que a ebulição artística de Washington serviu de protótipo. Dead Mountain Mouth aspira ao futuro, o EP Spacehorse respira com os pulmões do passado. Escolas rivais ao ataque!
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GENGHIS TRON DEAD MOUNTAIN MOUTH Crucial Blast 2006 |
É rude o despertar de quem ainda no berço dá conta de que só com uma hostilidade cega se é capaz de fazer frente à ameaça do underground que ocupe a polaridade oposta à sua. Verdade seja dita: o duelo que conduzem actualmente as frentes subterrâneas das duas costas norte-americanas é bem mais interessante de se acompanhar do que qualquer atrito hip-hop que a MTV tente moderar com programas sobre recauchutagem ou delays em cerimónias de entrega de astronautas plastificados . Que saudades da carnificina que gerava o feudo Death Row / Bad Boy... Contudo, o hardcore anabólico – por incrustação caótica de elementos digitais - evita dramas reais ao não procurar transpor literalmente para a realidade o que prega a lírica farpada e assanhada dos seus discos. Fosse esse o caso e ninguém se atreveria a frequentar um concerto de Locust sem uma máscara anti-gás (ainda assim, aconselha-se o traje pela pinta freak-chic que possa conferir a quem ouse usá-lo). Mas o momento diz respeito aos Genghis Tron, que há questão de um ano trataram de baralhar as contas ao panorama grindcore com um EP, o detonador imprevisível Cloak of Love, que intrigava ao ponto de provocar uma irritação sarnenta. Estoiravam com uma colocação estratégica uma sucessão infernal de abusos metálicos in your face e linhas de electrónica capazes de duplicar o orgulho aos fãs de Depeche Mode. Moviam-se essas marcas no corpo do embrião. Dead Mountain Mouth - a confirmar a tendência do ano para uma esquizofrenia montanhesa - faz desse teatrinho combalido uma ópera de Puccini. E a megalomania assenta bem a estes Genghis Tron.
A mesma megalomania que trataram de recuperar ao nome do imperiador mongol Genghis Khan, personificação da face violenta e ambiciosa do trio nova-iorquino, que por sua vez combinaram com Tron, que aponta para um clássico inferior de ficção-científica e respectivo quadrante cibernético (bem datado por estas alturas). O nome formado é de facto exemplificativo do que reserva a afronta musical presa como uma bala entre os dentes de Dead Mountain Mouth, convenientemente escalado para lançamento na data mais diabólica do novo milénio – 06/06/2006. Como quem luta por supremacia num Royal Rumble, competição da WWE onde apenas um de trinta lutadores vence, degolam-se entre si as devoções doentias exploradas durante os últimos 25 anos (que devem coincidir com a idade média do trio): o hardcore digital dos Atari Teenage Riot ainda mais foribundo e grotesco, uma tradução críptica do gótico escanzelado dos Alien Sex Fiend, o arrastado passo a passo de um sludge que os Melvins criaram como o seu Frankenstein. Agora aplique-se tudo isso à produção apuradamente balística que Kurt Ballou (o Converge que é o Albini do hardcore voraz) costuma conferir a estes objectos dizimantes não identificados. Ainda vai ter o ano de conhecer o Inverno para que alguém consiga compreender o significado da maldição pagã inscrita em “White Walls”, uma espécie de revisitação macabra da absolutamente seminal composição “Gesang der Jünglinge" de Stockhausen (à qual se escuta o desespero das crianças numa fogueira simbólica). Sendo que tentar decifrar palavras à torrente de berros aqui exorcizados é tão árduo como encontrar talento à interpretação de Adam Sandler numa das suas comédias produzidas em série.
A alguém agrada o empalamento de um hardcore adormecido sobre a facilidade que representa actualmente abordar os mesmo temas de união e transição geracional. Tudo isso agora parece ser carne para canhão Morangos com Açúcar. Ao enxofre que exalam estes caga-cacos cheira-se a alienação assumida de quem antecipa o apocalipse como o mais satisfatório dos banquetes pornográficos. Os movimentos avançam por turnos num tabuleiro laminado. Esta foi a vez dos Genghis Tron apresentarem a sua visão profética. Algures, deve estar prestes a despertar um gafanhoto que, até ver ser destronado o seu estatuto régio, terá sempre direito à última palavra. Ou seja, Dead Mountain Mouth vai cuspindo lume para o ar até que soem os primeiros acordes da praga que os Locust reservam para breve ou até ser derrubado por uma ameaça que ninguém antecipasse. Quando ao ano se puder alinhar todos esses patifes, talvez então possamos rectificar a hierarquia e, agradados, descobrir quem manda de facto neste lodoso e ácido latifúndio onde dormem paz as cinzas do hardcore passado.
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SPACEHORSE SPACEHORSE EP Gravity 2005 |
Devo admitir que nutro uma sólida simpatia saudosista por aquele hardcore que não teme o contacto visual com o alvo humano a quem dirige um desafio ético. Não há como duvidar da intenção samaritana à questão crua que os Bad Brains colocavam a alguém mergulhado em espiral de vicio:”How low can a punk get?”. Perdoe-se às lendas de Washington DC os pecados de fim de carreira e recupere-se esse mandamento do hardcore que, em surdina, ditou que “quando um cai na merda, todos caiem com ele”. A verdade é que a cena de San Diego (e não só) ainda está em divida para com um Matt Anderson – força motora destes Spacehorse - que arquitectou visionariamente um pilar underground a partir da eternamente modesta Gravity Records e de uns Heroin cuja influência importa aclamar. Matt Anderson cavou as entranhas ao hardcore quase como o Joaquim de Almeida que, no algo desastroso Tentação, acede a descender ao fundo rochoso da heroína na tentativa de salvar quem a esse parecia condenado. Matt fez do género um lugar mais obscuro e rarefeito, uma entidade a que convinha o isolamento que oferece o parcial anonimato, colocou trancas à porta com um nome tão corrosivo como Heroin. Agora colhe despreocupadamente os frutos dessa reputação e forma, em conjunto com um invejável rol de figuras musicais (recuperadas aos abrasivos Clikatat Ikatowi e Camera Obscura), uma banda de hardcore sem truques conceptuais na manga ou ambição que vá além do quarto de hora de consistente combustão de métodos incendiários que o género apresenta por defeito. Ou seja, a habilidade nata para simular a sensação de que a banda caminha sobre brasas, com baixo e guitarra (Scott bartilonni é foda!) unidos na mesma cilada a que incitou a inquietude anárquica dos Dead Kennedys. Depois, "Blood like honey" tem uma entrada que é puro Bad Brains (mas que não serviria à mão reprodutora de Frank Black que os invocou algures em Teenage of the Year). Alguma redundância nos temas invocados, mas intacta a atitude de um hardcore que, resistentemente, recusou pintar os olhos e usar lenços na cabeça. Temos uma cobóiada das antigas... Ao que dá a entender este curto EP, ainda se aceitam inscrições na velha escola.
migarsenio@yahoo.com









