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© Teresa Ribeiro |
Entre o explosivo abalo que foi Pulp Fiction em 1994 e os restantes seis anos da década de 90, sofreu um imenso desgaste aquela fórmula das histórias entrelaçadas, que havia de evoluir até ao mecanismo de zapping entre personagens que estabelecia a divisão em actos em filmes como Magnólia ou o bem mais modesto Go – A Vida Começa às Três da Manhã (cujo andamento narrativo inspirou este artigo). Mecanismo esse que foi directamente herdado do cinema de ensemble do outsider Robert Altman. Mas o que importa aqui é estabelecer o contexto para os discos que de seguida se apresentam. Como se de uma polaroid múltipla para um momento exacto que antecede à meia noite, percorrem-se cinco discos capazes de servir de banda sonora a ocasiões tão diversas quanto voláteis à imaginação. Respectivamente correspondentes a cada disco: a situação de um rapaz que aproveita a lua-cheia para dar uso ao skate no terraço, um casal de turistas inebriado pelo uso ruidoso de uma casa de banho pública, uma jovem perdida no dilema da melhor maquilhagem para ida ao Lux (ok, o artigo foi idealizado com Lisboa em mente), uma reconciliação amorosa entre os forros de cama tingidos com personagens da Guerra das Estrelas, um monovolume tão apinhado como uma lata de sardinhas em que não cabe sequer mais uma garrafa de cerveja.
A música abordada parte e dirige-se para paragens igualmente diversas: Circlesquare e a dupla Modeselektor actuam já em Junho no impressionante Sònar de Barcelona (a que se pode conhecer mais em detalhes http://www.sonar.es), Angie Reed encontra-se num beco sem saída, Ms. John Soda refresca e completa a noção presente do catálogo da Morr Music, Mike Shannon não adianta os melhores presságios relativamente à actividade dos laptops canadianos. Cinco realidades paralelas, cinco discos.
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CIRCLESQUARE FIGHT SOUNDS EP OUTPUT RECORDINGS / FLUR 2006 |
Na actualidade musical pós-Franz Ferdinand, envergar ao pescoço uma gravata vermelha induz ao mesmo desleixo e excesso de confiança que normalmente acusa o emblema de um clube grande ao peito de uma vedeta da bola que, só se preocupará em suar a camisola, quando for ao fundo o sobrepovoado barco que tem os Ferdinand e Interpol como capitães. Talvez só nesse momento de pânico bandas como os Rakes, Editors ou outros abonados de hype fabricado comecem a compor discos com outro objectivo que não a pura clonização. Eu próprio comprometo-me a oferecer a promo que tenho em mãos a quem conseguir conter o riso durante o visionamento integral do vídeo dos Rakes. Aquele em que o vocalista deforma o rosto em absoluto desespero por alcançar uma fiel aproximação do semblante perturbado de Ian Curtis, que voltaria a colocar termo à vida se tivesse acesso a 15 minutos de horário nobre na MTV. Soa algo apocalíptico referi-lo, mas, quando começar a escassear o tempo de antena reservado à promoção de todos os novos dandys engravatados, a sobrevivência do mais apto suceder-se-á por meio da capacidade de cada banda em reinventar-se. Assim fizeram os Radiohead ao evadirem-se do abrigo brit-pop antes que o seu telhado desabasse sobre os Oasis ou Suede. O imigrante canadiano Jeremy Shaw – esteta de Vancouver representado editorialmente pela britânica Output - emancipa-se ao aburguesado laisser-faire da linhagem institucionalizada por adopção da pose actualmente dominante e compõe um EP que aproveita apenas a elegância nocturna ao eixo Brooklyn-Birmingham para alcançar uma terceira via bem mais apreciável que as antecedentes.
Como determinante ponto a favor do interesse que o projecto Circlesquare possa suscitar, Jeremy Shaw conta com a generosa abundância de perspectivas que muito provavelmente terão resultado da ginástica estética adquirida na dedicação pessoal a exposições de arte e à produção de música para televisão. Ambas alíneas curriculares que, de modo implícito, garantem uma cativante base estrutural – a de um plano de ataque sequenciado – ao que por si só não apresenta frescura suficientemente pertinente: uma electrónica marcial de dimensão cyber-Matrix, impulsionada por linhas alarmantes, serenada através da intervenção pacificadora de um rock que é apenas rumor de si mesmo, atrofiada pela boémia intravenosa do parceiro de label, Colder, e enegrecida pela mão trágico-romântica do Trent Reznor que não sabe dizer que não ao contributo em bandas-sonoras de filmes centrados em personagens atormentados (Assassinos Natos, Estrada Perdida). Conseguir aliar tudo isso num suporte labiríntico que envolve a inclusão de um épico homónimo em três partes – a segunda das quais fragmentada em quatro momentos mais climáticos - é tarefa a que normalmente só os Flaming Lips escapam incólumes. Fight Sounds EP vale sobretudo pela sua exemplar execução em termos narrativos. Quando Shaw repete incessantemente Baby turn the lights down / this is strictly fight sounds, procura angariar voluntários que se atrevam a atravessar o portal que dá acesso ao plano virtual onde se cruzam os Morphine e a sua própria representação robótica futura. Passa por cada um decidir se esse mutante tem um aspecto grotesco ou não.
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MODESELEKTOR HELLO MOM! B-PITCH / FLUR 2005 |
É de apreciar a versatilidade da expressão “A culpa é do macaco...”. Serve para encerrar uma situação assombrada por uma responsabilidade a atribuir, cumpre lugar do desabafo e funciona como sinopse para um qualquer daqueles filmes em que todo o universo entra em colapso assim que um macaco escapa à jaula (em exorcizante alusão mais ou menos directa às presumíveis origens de alguns vírus). Antes mesmo de cumprir metade da sua duração, Hello Mom! - o título que introduz Modeselektor à robustez dos longa-duração - já possui instalados e prontos a cumprir a sua missão sensorialmente estimulante todo o tipo de engenhos infalíveis - nomeadamente, um banquete de cyber-rap moderadamente cacofónico em que os franceses TTC a cerca altura celebram os prazeres do canibalismo. Nesse “Dancing Box”, tal como no house que se lhe sucede, vai sendo explorando o alcance vicioso da simplicidade dos loops e trechos rítmicos que sobrevivem impermeáveis a incontáveis escutas. Detonando a seriedade - que associaríamos a um disco germânico - por meio de uma imprevisibilidade que torna vizinhos amigáveis os ambientes urbanos e um non-sense selvático (“Tetris Pack” suspende linhas básicas em lianas) onde habita o macaco-mascote. Faz, por isso, todo o sentido que à dupla alemã de produtores obtivesse para si a reputação que merecem as guerrilhas. Daí que o percurso Hello Mom! possa ser comparado a uma virtualização não-violenta da ameaça eminente que lançou o clima de tensão das Olimpíadas de 1972 ocorridas em Munique - tal como retratadas por Spielberg e com a agravante de condensar isso em 40 minutos. Nem sequer é Hello Mom! um disco político ou aterrorizante, mas explode em direcções inesperadas a cada altura que o ouvido se decide a assentar sobre a sua parede de artifícios mais aveludados. Ninguém adivinharia por ventura que um par de imberbes produtores alemães se atrevesse a fazer futurologia com a filmografia recente de Quention Tarantino: “Kill Bill vol.4” encontra Gogo Yubari, possuída pela libido infernal de Ellen Allien (patroa da B-Pitch) e Ada, a decepar violentamente a cabeça amarela do peluche Mr. Oizo em jeito de vingança pelo tormento que foi durante meses “Flat Beat”. Ao inquérito bibliotectário que alguém possa vir a colocar a um Hello Mom!, que oferece todo tipo de resistência à permanência num mesmo estado atinadinho (o do house corriqueiro), pode-se sempre responder com um sempre útil: “A culpa é do macaco...”.
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ANGIE REED XYZ FREQUENCY CHICKS ON SPEED RECORDS / FLUR 2005 |
A última e única das vezes em que estive na presença de Alex Murray-Leslie, vértice mais oxigenado das Chicks on Speed, reparei que passava descomprometidamente discos de dança para uma rádio catalã a promover-se numa tenda bem frequentada. Não reparei, contudo, se trazia um quebra-nozes ou um maçarico em miniatura na mão desocupada. Vem XYZ Frequency confirmar as piores suspeitas e instituir como tortura a preferência musical das Chicks on Speed que, com este lançamento, reafirmam o apadrinhamento da ex-baixista dos Stereo Total, agora tornada conceptualista e actriz ocasional, Angie Reed.
Ao que se sabe, já a orientação anterior álbum - The Best of Barbara Brockhaus era atribuída a um conceito algo frágil. Ou seja, à projecção fantasiosa do universo que aprisiona em tédio uma atraente secretária e das medidas que toma para se evadir a esse lodo boçal dominado por homens pouco interessantes. Caso para dizer que Angie Reed escapou a uma alhada para se meter noutra bem pior. Neste caso, a diminuição do sentido da vida aos limites de curtas-metragens animadas. De imediato se percebe que de nada serviu à menina o convívio com um mestre nessa arte, Felix Kubin (que continua, na penumbra, a edificar um legado de música infantil notável). Depois de darmos conta de que Reed se deu ao trabalho de esforçadamente enlaçar os seus melhores atributos no campo do songwriting teatralizado (qualquer coisa entre os negativos de Regina Spektor e os White Stripes montados por Satã), não sobra sequer o electro-clash para responder pelo réu de tal descalabro. Sobra, como despojos da tentativa inglória, um deslocado conjunto de músicas que desfilam pela corda bomba com um aspecto baço e desleixado (os ritmos utilizados são os que ensina a Introdução do Manual de Fruity Loops). Não é de ânimo leve que refiro a existência de dezasseis dessas (mais uma remistura) por aqui.
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MS. JOHN SODA NOTES AND THE LIKE MORR MUSIC / FLUR 2006 |
Com a achega que me merece este Notes and The Like, completa-se uma trilogia de pequenas resenhas que, unidas, proporcionarão um relatório compacto da actualidade auscultada à Morr Music. A quem interessar uma opinião complementar sobre a direcção musical da label berlinense, aconselha-se a consulta das resenhas que se ocuparam dos últimos discos do novo romântico B. Fleishmann e de uns bem menos apelativos Electric President. Contudo, permite-me o segundo disco do par Ms. John Soda a acrescentar um aditamento ao que já havia sido escrito sobre a Morr: Postal Kraut. A expressão - apropriada para a ocasião – define perfeitamente o passado recente da label e o futuro que se antecipa a Stefanie Bohm (ela que se ocupa dos teclados nos Couch) e Micha Acher (ele que, com um baixo nas mãos, sustenta a pressão arterial dos Notwist e Tied Tickled Trio e que muito suou para levar a bom porto o projecto 13 & God). Postal Kraut, repita-se. “Postal” em representação de metade do ideário pop que Ben Gibbard e Jimmy Tamborello tornaram serviço público com um manual de referência intitulado Give Up, cuja autoria assinaram como Postal Service. A denunciá-lo, um miminho chamado “A Million Times” que trata de amenizar o aspecto vagamente estéril do disco com vibrafone e cordas picuinhas que só a pop esmerada consegue salvar da lamechice pura. “Kraut” por diluição horizontal da tal fórmula pop que perde propriedades qualitativas a cada vez que é obrigada a transpor obstáculos rochosos organicamente electro (“No. One” livra-se bem do estigma plástico do termo) . “Kraut” por conseguir conjugar em imperturbável continuidade um cosmopolitismo acolhedor (a sofisticação abunda nas programações inflectidas de “Line by Line”) que gera saudades dos Lali Puna. Saudades que provoca Notes and The Like em múltiplos ângulos: dos primeiros contactos com a música dos Pet Shop Boys, de uma sequela para Give Up que tarda a surgir em cena e, continuamente, das agradáveis e minúsculas reacções químicas que vai provocando a simpatia deste segundo tomo hermafrodita em contacto com um ouvido disposto a contorcer-se a um adormecimento em caixinha de fósforos.
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MIKE SHANNON POSSIBLE CONCLUSIONS TO STORIES THAT NEVER END ~SCAPE / FLUR 2006 |
Incorre de parecer cruel questionar a consistência de um disco a partir da ambição do seu título, mas Possible Conclusions To Stories That Never End é, de facto, tão vago e maçador como o seu nome leva a suspeitar. Com o lançamento deste seu segundo longo empreendimento, Mike Shannon, gestor de laptopia diversa emergido da cena electrónica canadiana, entrega-se à árdua tarefa de limitar a pouco menos de uma hora a variedade de emoções que foi acumulando em viagens pelo Ontário, Valência ou Tóquio (representada sob a forma de alguns field-recordigs). Shannon desejaria, à partida, proporcionar um listener digest que traduzisse eficazmente a distância que o próprio percorreu. Sendo que, para atrair até si os curiosos casuais, tal exposição personalizada necessitaria de um número mínimo de componentes atractivas que o diferenciassem de qualquer outro disco amanhado num laptop topo de gama. Pode-se dizer que conhece Shannon os cantos à casa do groove e que dessa abusa como se fosse uma fonte de energia renovável. Integram o rol de ingredientes o contra-baixo em extravasamento de coolness em “Tears”, a voz anti-gravitacional em sexual colisão Cronenbergiana com um espesso mural de graves em “Miyako”, simulações rítmicas de tudo o que faz da noite citadina um playground. Porém, é no dosear dos ingredientes que acaba Possible Conclusions To Stories That Never End por descarrilar para uma desproporcionalidade entediante. Ao ponto de parecer roçar a eternidade quando nem sequer dobrou a sua metade. Nestas circunstância de maratona, valem como shots de bebidas enérgicas alguns detalhes que, nem assim, surpreendem quem mantenha uma familiaridade mínima com o catálogo da ~Scape. Detalhes de médio interesse como o freestyle nocturno de Moral Undulation, que muito se assemelha a um sósia de Michael Franti dispensado por Pole a Shannon para a ocasião. Para mais, o autor de Slight of Hand conta com concorrência conterrânea de peso no dub cerebral que tem valido a Deadbeat excelentes discos. Antes fossem estas histórias intermináveis.
migarsenio@yahoo.com