Baby Boom Blip: electrónica de berço
· 09 Abr 2006 · 08:00 ·
© Teresa Ribeiro

Reflicta-se ponderadamente sobre a progressão das várias frentes conhecidas ao horizonte musical afecto a um renovado comité militantemente indie. A partir daí, alie-se num mesmo raciocínio uma muito provável Santa Trindade que reúna nas alturas o nome dos Arcade Fire, Animal Collective e Deerhoof. Embora não sejam perceptíveis entre os mencionados uma quantidade de traços comuns que lhes denuncie as mesmas origens, sabe-se que, por intermédio de entrevistas e sobretudo pela música, que acaba por ser o culto da criancice a unir os três nomes. Os Arcade Fire incriminados por uma assimilação infantil de uma realidade carregada de pesar, que, de resto, se encontra escancarada no hino de escapismo que é “No cars goâ€, onde, protegido entre as paredes de uma casa de papelão, Win Butler fala em nome do colectivo:â€Us kids know.â€(que um dia há-de servir de título a uma qualquer antologia da banda). Já os membros do Animal Collective assumem frequentemente que a variabilidade de um concerto depende muito das luzes e do espaço que os recebe – como se a banda fosse padecente da necessidade que tem uma criança em adaptar-se a um lugar. Os Deerhoof mencionam a violência nata dos putos como inspiração para as suas demolições de monumentos melódicos. Face a uma era em que a informação é um valor tantas vezes em excesso, não surpreende que a rebelião punk – na acepção ética e não estética do termo – reaja a isso com uma viragem de 360 graus em direcção à ingenuidade.

Surpreende sim alguém aproveitar o impulso desse trajecto regressivo e vergar esse rejuvenescimento musical ao ponto deste encontrar as suas mãos e joelhos sobre o chão. Resulta em alguns momentos reveladores a observação da autenticidade com que gatinha uma electrónica idiomaticamente básica até uma sofisticação que à partida não lhe adivinharíamos. Aos próximos discos verifica-se um diálogo exploratório entre crianças e adultos (e vice-versa) assente sobre uma base exclusivamente instrumental – sendo que apenas os Cinc em Music for Baby quebram com essa regra. Vocábulos sob a forma de elos perdidos entre a distância que separa as idades dos envolvidos – respectivamente encarnados por bebés com algo a revelar aos adultos, adultos com uma mensagem a veicular até aos bebés e um intermédio personalizado por dois produtores que se apropriam de um imaginário infantil para produzir música capaz de agradar às duas partes. Os apontamentos que se seguem resultam de larga exposição aos discos da japonesa (e abertamente dada uma cuteness adocicada) Amorfon e ao parcial psicadelismo da Baby TV, que não é mais que a extensão lógica do rosto de bebé risonho que espreitava por entre um sol radiante que só brilha na terra dos Teletubbies.

V/A
KINDERMUSIK – IMPROVISED MUSIC BY BABIES

Amorfon
2005

Quem, como eu, passava ocasionalmente os olhos pelo programa Pequenos e terríveis, apresentado por Catarina Furtado, sabe que a graça dos miúdos perdia qualquer naturalidade assim que eles desenvolviam uma consciência do que o público esperava que dissessem num tom mais ou menos desprevenido. O facto de contarem com menos de 18 meses, leva a crer que seja forçosa a espontaneidade dos dez potenciais experimentalistas expostos em Kindermusik – até porque custa a crer que com essa idade algum tenha noção do impacto que terá o seu desempenho e porque a supervisão adulta limitou-se a isso mesmo, proporcionar a captação em estado bruto do que vai resultado ao momento de improvisação. Entre os convidados a tal tarefa, surge a presença ilustre de Felix Kubin que conta já com experiência na composição de música para desenhos animados (a verificar em Film Musik) e cujo nome servirá para legitimar um pouco que seja um conceito à partida duvidoso.

Kindermusik convida a que o cepticismo seja deixado no caixote de lixo do berçário e que, a partir de uma percepção sem reservas, seja estabelecido um pacto nostálgico com os exercícios apresentados. Exige-se do ouvido uma atenção redobrada para tentar perceber como o piano eléctrico de Alyssa Elliott consegue ser sugestivamente esperançoso e, ao mesmo tempo, melancólico por ser esparso entre notas. Marcam também presença alguns desempenhos bem mais sónicos (às vezes, bizarros), entre os quais um que envolve um órgão e gravador que, assustadoramente combinados, se aproximam dos efeitos sonoros providenciados imaginativamente para O Exorcista, onde uma carteira cheia de cartões de crédito era fustigada manualmente para simular o som que conhecemos ao pescoço rodopiante da possuída Reagan. Soa a heresia, mas é o que realmente parece. A verdade é que, sem nunca se impor de modo dogmático, Kindermusik semeia em quem escuta a curiosidade que normalmente provoca num bebé todo o objecto estranho. Serve o seu propósito para relembrar que na idade dos dentes de leite tudo é bem mais propício a que se combinem exaustivamente as propriedades a uma palete de tons bem mais limitada. A ignorância como facilitadora de um minimalismo cândido.

V/A
MUSIC FOR BABY!

Amorfon
2004

Alinhar seguidamente as escutas de Kindermusik e Music for Baby! obriga a um ajustamento preciso do discernimento a confrontar cada escuta – tão somente porque o sentido da mensagem aqui é o inverso: parte da execução de música apropriada à mineralização do fluído amniótico que circunda o feto ou a ocupar o lugar da caixinha de música sincronizada com a rotação de um móbil colocado acima de um berço. Passam os intervenientes a ocupar o lugar da ama-seca por via da música. Pese embora a presença de alguns momentos verdadeiramente encantadores (aqui, como em qualquer outro sampler), a intenção pouco clara de algumas passagens impede Music for Baby! de garantir a coesão do seu correspondente recém-nascido.

Senão vejamos: alguém teve a brilhante ideia de suavizar minimamente o bombear de um protótipo avassaladoramente industrial e crer que isso podia ser terapêutico para o melhor lidar com o escuro por parte dos miúdos. O colectivo nipónico de turntablists BusRatch bem pode ir poupando dinheiro para as fraldas dos putos a quem venha a dar escutar o catártico “Toy Sleepyâ€. Ryoichi Kurokawa, que já se ocupou de desenvolver conceitos visuais para Ryuichi Sakamoto, assume a responsabilidade da mais microscópico e desafiante falsa canção de embalar – e isto com um glitch, que ascende como labareda, entrelaçado com a abstracta presença de um loop que atravessa “Memoria†como uma borboleta embriagada. Murcof não está só. A representar o Ocidente, Owen Ashworth (o nome ocultado por Casiotone for the Painfully Alone) e os franceses DAT Politics não surgem deslocados entre as fileiras recrutadas para esta missão. Também eles sabem cultivar a criancice: o primeiro dá-se à partilha de um breve cameo da “roufenhice†cada vez mais inerente ao nome que o anuncia, os segundos comparecem num registo bem menos fragmentado que o habitual, mas tão viciantes como sempre e nem sequer é preciso usar chucha para dançar ao som do reaproveitamento oportuno de blips e blops a que devia ser interdita a entrada no milénio em que vivemos.

TOY
TOY

Smalltown Supersound
2006

Não seja feita qualquer confusão entre os homónimos, apesar de ao arauto da canção popular portuguesa se conhecerem refrões prontinhos a serem entoados por crianças traquinas com menos de 8 anos ("Aguenta-te com esta / A culpa não foi minha, tu é que querias festa" é tão apetecivelmente primário quanto um tufo de algodão doce). Além de esclarecer por si só a intencionalidade lúdica do projecto a que serve de nome, Toy descreve o resultado de um feliz encontro numa loja de discos entre o inglês Alisdair Stirling e o norueguês Jorgen Traeen, ambos habituados à movida musical das cidades em que residem e aqui empenhados em aplicar uma sagaz sensibilidade catchy à emulação de temas para séries infantis imaginárias. Não foi ao acaso que atribuí a este um lugar junto de dois discos editados no Japão que cata a pop mundial a partir de Shibuya-Kei - Toy conta com a referencialidade cosmopolita própria do bairro de Tóquio que aprendeu a catalizar a sua devoção pela pop internacional para os discos de Pizzicato Five ou Fantastic Plastic Machine. Mesmo assim, por imposição da premissa a que se propõe, apresenta-se adaptado à variante de ser um disco que capta fórmulas pop clássicas e diamantinas (“Rabbit pushing Mower†soa a ABBA à mercê da vontade animada do lendário Vasco Granja) para limá-las até adquirirem um perfil cartoonesco. Além disso, atirar pérolas a um personagem tão simpático quanto Porky Pig não parece assim tão descabido. Imaginemos que era eliminada toda a heresia e características rock a Suspended Animation, disco que os Fantômas conceptualizaram em torno de Abril e dos desenhos de Yoshitomo Nara, e sobrava apenas o slapstick e alguma perversão. Uma versão Daft Punkiana desse – com a insuflação de eficácia que isso implica - não distaria muito deste Toy. Apesar de depender do tal pacto nostálgico que já foi mencionado, Toy exibe níveis de produção por si só capazes de “pescar†a atenção de ídolos pop que dependam o sucesso de um próximo hit para continuarem em jogo mediático. É quase cruel não ceder a um disco que termina com um crepúsculo pintado a cera e as notas musicais desavergonhadamente infantis no lugar dos sapatos de Fred Astaire. Toy representa um apontamento curioso a registar ao primeiro semestre de 2006.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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