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© Teresa Ribeiro |
Onde moro, não dominar o vocabulário próprio dos desportos náuticos, equivale a estar à margem de mais de metade das conversas de circunstância que ocorram à beira-mar. Mais do que o tempo ou a saúde familiar, é o estado do mar o tópico de eleição. Dependendo do contexto, palavras como swell, barrel ou offshore constituem maior ou menor desafio. Fazem-se bons amigos na Ericeira usando correctamente esses termos. Quem está por “fora”, pode sempre intervir na conversa com um semblante apostado a conferir sabedoria à lendária máxima: “O mar amanhã vai subir, descer ou ficar na mesma.”. A indulgência típica da cavaqueira consente a redundância da frase, mas estagna invariavelmente a conversa perante tão brilhante raciocínio. O mesmo se passou com o drum n’ bass, nos anos que seguiram ao boom de meados de 90: explorou grande parte das combinações possíveis num curto período de tempo (ao ritmo de uma compilação por semana) e, com isso, acusou uma prematura saturação rítmica. Em fase terminal, ganhou uma aparência obsoleta indissociável dos meios que o escravizaram (publicidade e espaços nocturnos reincidentes na preferência musical). Conhecer um segundo significado à palavra offshore representa retaliação face à ininteligível conspiração surfista e domínio da palavra chave para redescobrir o irmão mais velho do Jungle (que é basicamente a designação atribuída às manifestações pioneiras de DnB). A label Offshore permite ao DnB recuperar algum fôlego à tona de quaisquer tendências actuais.
Para que para a próxima não se sinta deslocado o leitor, o Bodyspace revela o significado de offshore, no que diz respeito ao seu uso quanto à prática de surf e bodyboard. Offshore descreve o vento que sopra de terra em direcção ao mar, aquele que levanta as cristas e atribui tubulação às ondas, e, assim, aperfeiçoa a sua forma. A nova-iorquina Offshore - que aproveita a temática marítima para a sua estética visual – actua, no cenário do DnB, em concordância com o seu nome. Perante um elemento que quase sempre acusa os mesmos movimentos (se exceptuarmos as marés-vivas do drill n’ bass de Aphex Twin ou Venetian Snares), a Offshore esforça-se por conferir à ondulação existente uma renovada acção eólica que transporte consigo fulgor criativo de nova escola. Através de um processo natural, que não procura à força demonstrar revelia face à memória recente da oceanografia (leccionada durante anos por catedráticos como Roni Size e Goldie). Longe de excentricidades vincadas que possam deformar as vagas ao ponto de estas se tornarem irreconhecíveis. Para fazer dessa postura um ponto assente no DnB do novo milénio, DJ Clever reuniu numa compilação os mais sonantes sets (período em que a ondulação conhece acréscimo) a cargo dos praticantes da Offshore e atribuiu-lhe o nome de Troubled Waters (lançada em 2004). Nem mais.
Inserido num catálogo pouco habituado a discos extensos, Troubled Waters era a excepção que englobava as regras. As regras, neste caso, são os 12 polegadas e EPs, que a Offshore lança com um aprumo pronto a angariar simpatia e estima junto de coleccionadores e entusiastas. Privilegiando a qualidade sobre a quantidade, os discos de duas faixas condensam economicamente os breakbeats que realmente importam. Aliás, o formato escolhido é o que mais se apropria a um género cujas novas demonstrações teriam de se agigantar à escala da megalomania para contrariar a imponência de statements de autor como Modus Operandi de Photek ou Drum n’ Bass for Papa, oitava maravilha que Plug (a.k.a. Luke Vibert) trouxe ao mundo. A Offshore recupera o formato do split ao hardcore da década de 80 e revela-se a conta gotas. Gotas num oceano de sofisticadas formas de revitalizar o adormecido monstro marinho Drum n’ Bass.
Aqui fica uma gota a servir de espécime...
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ASC AKA INTEX SYSTEMS SILENI |
Adoro aquela sequência de Tigre e o Dragão em que a malvada vilã Jade Fox congela o corpo a um adversário com uma série de golpes clinicamente aplicados no seu peito. Ao oitavo lançamento, a Offshore já dava provas de que dois dedos bem medidos bastariam para deixar petrificado de vergonha o DnB que o mainstream gosta de vender por cherne. “Drum Track” de ASC (aka Inter Systems) é um daqueles grandiosos espasmos sincopados que parece encaixar, no seu chinelo alado, os ritmos milagrosos dos últimos cinco anos. Nem que seja para, de seguida, confrontar todos congéneres ultrapassados com um sorriso de Indiana Jones após duelo armado (de uma só parte). “Twitchy Droid Leg”, a cargo de Sileni, corresponde tão somente a uma das faixas mais seminais do catálogo Offshore – atendendo a que serve de âncora à mencionada compilação Troubled Waters e muito em breve será alvo de duas remisturas. Plenamente confiante do seu vicioso loop - que faz progredir ao longo de 100 repetições que sejam -, é um daqueles exercícios que comprova a qualidade pneumática do DnB como afrodisíaco.
Site da editora - http://www.offshore-recordings.com
migarsenio@yahoo.com