Novo hardcore com ar de porco #1
· 12 Dez 2005 · 08:00 ·
Aos poucos, o hardcore vai acusando uma longevidade que o permite a ser encarado com nostalgia. Uma nostalgia que em nada se compara àquela com que Vítor Espadinha recorda os primeiros meses de Outono. O hardcore nunca trouxe no bolso de trás um pacote de lenços. Entre saudosistas em tertúlia, nunca chega a ser lamechas o comungar das mesmas memórias mais ou menos recentes (até porque, no meio, o suor deve sempre predominar sobre a lágrima), mais ou menos próximas da obscuridade do circuito de Recreativos e Sedes do típico Portugal. É frequente alguém invocar situações díspares descortinando o mesmo número de dentes ao sorriso: não existe particular distinção entre uma bola de bilhar número 8 que esmaga crânios num concerto de Agnostic Front, a cobóiada encetada por Tim Barry (vocalista dos Avail, que nem são propriamente hardcore) quando cantou entre o público na Voz do Operário ou relatos de casos clínicos ocorridos nas míticas matinés do Ritz. Aliás, fracturas ósseas resultantes do feudo que um dia opôs a cena HC da margem sul à de Linda-a-Velha são actualmente encaradas como medalhões de honra. A falta de critério no juízo da gravidade assim é porque a perspectiva nostálgica é a do colectivo, muito mais do que do indivíduo. Lamentável é que a falta de critério se estendesse ao “gato por lebre” que se verificou no transitar de milénio. Perante a indefinição, o underground viu-se de novo obrigado a intervir.
Com o domínio da Epitaph entre as exportadoras norte-americanas de punk/hardcore, muito contribuíram os anos que antecederam a 2000 para embaciar os traços adquiridos pelo género à nascença marginal (associá-lo a uma banda como H20 foi puro equívoco). Ao monopólio da Epitaph juntava-se a sucessão de crises de identidades de outra casa-forte, a Victory Records. Cientes de que o hardcore era muito mais que uma foto de promoção com um bom enquadramento de rostos e escassa luz, muitos foram os que procuraram refúgio criativo em soluções bem mais complexas (como o reinventado prog ou a abrangente barca pós-rock). Mas o hardcore tem direito a ser obtuso, estupidamente directo e primário. Tal como um dia Charles Bronson começou a deixar crescer o bigode e a disparar sobre a vilanagem de Nova Iorque na saga Death Wish. Foi ele (e depois Travis Bickle em Taxi Driver) que definiu a atitude hardcore. Por coincidência ou não, a label Deathwish Inc. empenha-se agora em devolver dignidade à tradição de um hardcore permanentemente vigilante.
Uma das mais eficazes formas de avaliar a categoria do hardcore de velha escolha passa por um estudo apurado do número de escutas que leva aos lábios a encontrar sincronização nos refrães e, num cenário avançado, às farpas líricas que a esses antecedem. Atingir uma simultaneidade vocálica antes das cinco escutas, leva a suspeitar que o disco seja demasiado catchy ou tão fácil quanto qualquer coisa que os Ramones tenham feito. Garantir a visceral empatia hardcore entre as cinco e dez escutas é provavelmente o cenário habitual e ideal. Não o conseguir antes das quinze, habitualmente conduz ao desespero e muitas vezes à troca do disco por dois euros e meio numa famosa loja de discos usados. A assimilação de ...The Beat Goes On é gradual, o que em nada condiz com o imparável balanceamento in your face de grande parte das suas faixas. Antes de dar a comer o seu bolo lírico, o debute dos Blacklisted na Deathwish Inc. crava um encardido anzol rítmico numa face e os seus riffs na outra. Só depois faz escoar os seus hinos de rejeição, comprometimento de honra e traição - reside, pois, na miopia temática do disco a sua principal fraqueza. Hardcore de reduzido Q. I. (o que aqui representa uma qualidade), Filadélfia - de onde provêem - a ferro e fogo (por efeito de contágio da lendária tradição Nova-Iorquina), a sucessão lógica para o legado que os Madball formaram nos anos encarcerados na Roadrunner. O pulsar continuará a fazer-se escutar. Os Blacklisted pertencem à lista negra dos mais profundos receios EMO e à privilegiada lista de nomes a ter conta na actualidade do hardcore sem espinhas.
É de louvar a frontalidade a um disco que, a certa altura, desmistifica o papel do hardcore como sopa de letras a serem conjugadas num discurso politicamente correcto. Em “Writer’s Block”, o nevrálgico vocalista Elijah Horner serve de porta-voz à ideia de que o hardcore não precisa de ser liricamente sofisticado para unir em laço de irmandade espontânea os punhos dos miúdos: It doesn’t matter what I say / it could be anything / all that matters is what they hear / and fuck, it can be beautiful / fuck, we’ll turn it into something grand. Sem ser particularmente inovador, o pregão dos Killing the Dream reacende a convicção às tochas que bastam para iluminar a rota a um disco como In Place, Apart: aquela que é percorrida em jeito de elegia (ao hardcore de mentalidade positiva, neste caso) disposta a influenciar-se pelo passado, mas estanque face a outro tipo de pressões ou fusões. Para impedir o colectivo californiano de se dispersar entre as armadilhas da cobiça fantasiosa ou espasmos metaleiros (surgidos aqui e ali), eis que Kurt Ballou (guitarrista dos líderes de pelotão Converge) assume os créditos de produção. Ballou reaproveita o modus-operandi que fez dos Converge uma ameaça e, com a asfixia da melodia contra chapa de zinco quente, auxilia os seus pupilos a aniquilarem o sonho. Pertence a um disco como In Place, Apart edificar um renovado suporte de esperança (o combustível do hardcore) a partir dos esboços do passado (os Killing The Dream formaram-se a partir das cinzas de outros tantos colectivos). Nesse aspecto, In Place, Apart representa um entusiasmante tratado de engenharia.
Miguel ArsénioCom o domínio da Epitaph entre as exportadoras norte-americanas de punk/hardcore, muito contribuíram os anos que antecederam a 2000 para embaciar os traços adquiridos pelo género à nascença marginal (associá-lo a uma banda como H20 foi puro equívoco). Ao monopólio da Epitaph juntava-se a sucessão de crises de identidades de outra casa-forte, a Victory Records. Cientes de que o hardcore era muito mais que uma foto de promoção com um bom enquadramento de rostos e escassa luz, muitos foram os que procuraram refúgio criativo em soluções bem mais complexas (como o reinventado prog ou a abrangente barca pós-rock). Mas o hardcore tem direito a ser obtuso, estupidamente directo e primário. Tal como um dia Charles Bronson começou a deixar crescer o bigode e a disparar sobre a vilanagem de Nova Iorque na saga Death Wish. Foi ele (e depois Travis Bickle em Taxi Driver) que definiu a atitude hardcore. Por coincidência ou não, a label Deathwish Inc. empenha-se agora em devolver dignidade à tradição de um hardcore permanentemente vigilante.
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BLACKLISTED ...THE BEAT GOES ON 2005 Deathwish Inc. |
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KILLING THE DREAM IN PLACE, APART 2005 Deathwish Inc. |
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