A Loja do Download
· 18 Out 2004 · 08:00 ·
Tenho andado desencontrado das palavras e da música. A culpa é do quarto novo, do computador emprestado e da secretária que tem um cheiro a verniz ainda fresco. E da vida que mudou radicalmente, alterando por completo os meus hábitos e aquelas pequenas manias que ninguém entende mas que nos fazem sentir em plena sintonia com o mundo. Tudo é diferente (para melhor, confesso) mas estranhamente estranho. Enquanto não conseguir apanhar o novo ritmo dos dias e estes voltarem a parecer mais longos vou andar um pouco à deriva. Por isso, em momentos de alguma lucidez, como este, aproveito o raro espasmo literário, a urgência de escrever para recomeçar onde parei já lá vão alguns meses.

Resolvo dar vida às palavras após uns largos minutos a olhar lá para fora a ver a chuva cair sobre o muro cheio de musgo, os paralelos incertos e gastos da rua, a erva e as couves do vizinho da frente, as árvores… sempre gostei de ficar a olhar a chuva. Quanto mais chovia melhor. Agora não. A maldita levanta-me a terra e destrói-me o jardim relvado de um verde-escuro. Evito pensar nisso e em tudo o que possa perturbar este momento único - o do fervilhar dos dedos - que começa a ser cada vez mais intenso. Escrevo e faço-o na companhia dos BiarooZ, um projecto minhoto de música instrumental, a par de alguns temas do colectivo Puget Sound (“A Writter On a Loop” é uma das melhores canções que ouvi recentemente), sempre com um pensamento a perturbar-me: nada de relevante tem sucedido. Ou melhor, durante a minha ausência prolongada - fruto de meia dúzia de semanas onde tudo o que fiz foi gozar dos prazeres da vida ao máximo - não me preocupei assim tanto com o que se passava no mundo da música (mentira descarada). Também não perdi nada. Entretanto, após a leitura de algumas notícias, artigos de opinião e entrevistas, onde se salienta o bom desempenho da indústria discográfica a par de obsessões com o crescimento do DVD e o fenómeno do download, bem como confissões da influência que as novas tecnologias terão no futuro, lá encontrei um motivo para me fazer à escrita.

Ao lermos muito do que se escreve somos levados a acreditar que todos os intervenientes do universo musical têm consciência que se vive uma mudança há já muitos anos e que agora ela começa a, efectivamente, concretizar-se. Em Portugal, por exemplo, a introdução do download legal através do Sapo XL poderá ser um motor de arranque para uma nova filosofia no que à distribuição e consumo concerne. Certo é que no momento actual a indústria musical está dividida entre o download, onde consegue lucros fáceis, e o CD, um formato ainda vendável e margem de lucro maior, pelo menos se tivermos em consideração os valores que envolve e o número de consumidores. E tenho a certeza que os responsáveis pelas editoras vão fazer de tudo para que esta situação se mantenha por muito tempo. Porquê? Porque se apressarem o avanço das novas tecnologias, tornando-as acessíveis a qualquer pessoa, estão a preparar o seu próprio túmulo.

Se regredirmos um pouco no tempo verificamos que, ao longo das últimas décadas, falar de música era falar de novas tecnologias e da ameaça que estas representavam para a indústria musical tradicional. Pelo menos foi a ideia que subsistiu ao longo dos anos noventa e inícios deste século. Actualmente, graças às novas legislações e aos recentes serviços de download pago, passou a fazer parte do passado. O inimigo de outrora é, agora, o pote de ouro que está a assegurar a recuperação da indústria discográfica. Uma ironia deliciosa! Resumindo, a indústria musical está a erguer-se e a afastar fantasmas de outrora. Isto significa que, durante algum tempo, os prejuízos passam à história. Os a&r`s vão voltar a ocupar as suas cadeiras de couro bem confortáveis. Os investidores vão voltar a investir. Toda a gente vai respirar de alívio. Toda? E nós? Será que, no meio disto tudo, se esqueceram que o mais importante é a satisfação do consumidor? Muito se ouve falar dos problemas da pirataria, que se vende pouco, que é impossível manter preços baixos, que o IVA é um disparate, etc. Quantas vezes se fala da qualidade dos serviços da indústria, visível através dos discos e da música que nos fazem chegar às mãos ou da qualidade e eficácia do download? Será que os valores praticados se coadunam com o serviço efectuado? Não me parece. E será que o músico se sente satisfeito com a forma como todo o processo se desenrola à sua volta? Também me parece que não. Depois temos que ter em conta um aspecto: a indústria musical sempre teve problemas com a venda de discos (agora talvez comece a ser apropriado dizer música) e sempre terá. Vamos viajar um pouco no tempo? Em 1960 quantas pessoas tinham acesso à música gravada? Nessa altura as editoras, provavelmente, queixavam-se do mesmo de agora – vendas baixas. Ou seja, mais de 40 anos depois o problema mantém-se. A indústria musical tem, desde a sua verde existência, passado por constantes dificuldades, seja por falta de consumo; vítima da censura; modas; crises económicas; alterações de formato (pensem na passagem do vinil para CD) ou pela inevitável pirataria (começou com a cassete e já vai no MP3). E porque é que nunca se falou tanto de pirataria como agora? Porque a Internet veio alterar tudo, ou seja, um sistema estabelecido com regras específicas. A Internet não é apenas um meio de aceder à música. Ela é o inimigo em ascensão de todo um sistema musical instituído há décadas. Já alterou as nossas vidas melómanas e irá acabar por transfigurar por completo o conceito de editora discográfica.

Como referi anteriormente, as editoras tentam manter o formato CD competitivo porque a sociedade de consumo ainda não está preparada para grandes alterações, em especial se isso significa a adesão a plataformas digitais e tecnologia de ponta – por uma questão financeira mas também de formação -, mas já começaram a perceber que é esse o caminho a seguir. Torna-se claro que é um mercado em crescimento e aquele onde o lucro será sempre superior ao investimento. Ou seja, como sucedeu com o vinil, também será a própria indústria a por termo ao conceito tradicional. Teremos apenas o formato digital e, quem sabe, “Lojas de Descarregamento de Ficheiros Musicais”, numa espécie de junção entre a loja de discos e os net cafés. Isto para quem não tiver capacidade para o fazer em casa. Uma visão preocupante? Para os produtores e consumidores de música não. Porquê? Porque provavelmente daqui a uns 25 anos não teremos editoras, mas sim bandas ou grupos de bandas que disponibilizam as suas canções em sítios na net geridos por si. Esta situação implicaria a não existência dos vários intermediários, como as editoras e os retalhistas, resultando numa diminuição inimaginável (para muitos) dos custos. Do estúdio para o aparelho digital adequado o tempo de demora será curto e os valores a praticar perto do absurdo. Utopia? Se olharmos para a velocidade a que as novas tecnologias vão evoluindo começamos a acreditar que tal é possível. Basta pensar que desde o primeiro registo sonoro até à invenção do CD passaram-se cerca de 140 anos mas que agora as grandes revoluções se fazem, por exemplo, numa década. Vivemos numa sociedade onde tempo significa dinheiro. Quem chega primeiro vence em todos os aspectos. Todos os factos indiciam nesse sentido, o da supremacia tecnológica e do mais que provável desaparecimento das editoras. Pela primeira vez, em toda a história da música, o músico poderá ser o único e o maior beneficiário da sua criação. Não era bonito?
Jorge Baldaia

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