Marshall McLuhan e a informação cultural
· 01 Mar 2004 · 08:00 ·
Muitos foram os autores que debateram, com maior ou menor fervor, o fenómeno comunicacional de massas. Um debate que tem conhecido avanços surpreendentes e recuos mais significativos ainda.

Consideremos a obra de arte um conceito de capital importância para a sociedade de sempre. Através daquela, esta vê-se representada nas suas faces mais ou menos ocultas. Mas é também ela, que se vê transcrita (e interpretada), a insistir manter encerradas as “portas da percepção”, presunção cara a Aldous Huxley, que muito distintos pensadores ousaram penetrar. A consciência de interpenetração de mundos – o da produção artística e o da indagação crítica – é, antes de mais, um atributo social e cultural de monta e que, por conseguinte, não deve ser esquecido.

A contemporaneidade (para não entrarmos na problematização pós-moderna) encontra-se atravessada de maquinações indeléveis, formas por vezes pouco subtis de formatar a experiência sensitiva. Remeter a actividade crítica (críptica?), por mais boçal ou espreguiçada que possa parecer, para um plano menor de discussão é um manifesto acto de sobranceria legisladora, movida por erros grosseiros no exercício do intelecto. O crítico não é um agitador de massas, menos ainda um pastor que guia as ovelhas do seu rebanho. Não é um pai porque a boa crítica nasceu órfã – não se alimenta de tendências ou modas, apenas é movida por paixões. Sim, pelas paixões do crítico. E também os seus pequenos ódios. Quem não aguenta uma palavra mais afiada, um parágrafo mais mordaz, a causticidade de um texto, que baixe os braços e não dê a conhecer o seu trabalho. Que deixe de contribuir para o aparelhamento cultural da sociedade.

Nas esferas mais – arrisquemos, uma vez na vida – esclarecidas, a produção artística é já entendida na era da sua reprodutibilidade técnica. Não é Walter Benjamin que aqui convocamos para a discussão, mas Marshall McLuhan, em tantas situações erradamente citado. Para que connosco se sente e esgrima os seus reais argumentos.

No passado dia 23 de Fevereiro, na sua coluna semanal “Olho Vivo”, no jornal Público, Eduardo Cintra Torres refere-se a McLuhan como “o profeta” e acusa “a informação jornalística sobre a cultura” de “tender para o paternalismo”, denunciando que “omite qualquer sentido crítico”. E, logo a seguir: “esta tendência é tanto mais negativa porquanto a informação cultural é o que, (…), mais chega a uma parte importante do público.” Aponta o dedo, categórico: “a cultura tende a diluir-se em informação cultural, como já previa (…) McLuhan quando notava que cada vez mais formas de cultura e conhecimento estão a ser vertidas numa forma de comunicação.” Pois bem, justiça seja feita às palavras de McLuhan, mas a discussão não fica por aqui.
Depois, depois há uma coisa chamada “géneros jornalísticos”. Ainda que justamente se erga uma frente de resistência face à tentação de etiquetar este ou aquele espaço de “jornalístico”, consideremos, por escassos instantes, que estamos todos investidos de carteira profissional e podemos exercer livremente o ofício.

Distingamos, pois, dois grandes universos na imensa galáxia da comunicação. De um lado, a notícia, esse ente maldito da informação, que deve zelar pela isenção e objectividade. Devem, portanto, ser evitadas ilações, por mais insignificantes que pareçam, como “o novo álbum sucede ao excelente disco anterior”, no corpo da notícia. O erro está no atributo fornecido ao disco anterior de uma dada formação quando se pretende dar a conhecer que um novo registo será editado em breve. Há ainda a reportagem e a entrevista, que merecem uma análise mais profunda e cuidada, mas que, no essencial, devem conservar a regra de ouro da imparcialidade.

Do outro lado, temos o editorial, a análise, o comentário e a crítica, exercícios opinativos por excelência. Pode condenar-se, em qualquer caso, o estilo de determinado escriba, mas o preceito redactorial estará a ser cumprido na íntegra. Trata-se de lavrar uma opinião sobre um determinado pedaço de cultura que lhe chega às mãos. A partir daí, pode fazer-se valer de todos os recursos de estilo que conheça – desde a metáfora desbragada à ironia ou ao chavão reles. O céu é verdadeiramente o limite. Como é também no acto de criação, no caso do artista. E, desenganem-se, o crítico não é menos amante da arte por galvanizar um disco ou um filme ou delatar um livro ou uma opereta.

O contributo de uma reflexão avulsa como esta é, indubitavelmente, escasso, mas pretende fazer um pouco mais de luz sobre o obscurantismo que grassa. Para que restem menos dúvidas.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

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