Anticon
· 28 Set 2003 · 08:00 ·
Anticon é uma editora em movimento, um caldeirão de ideias que faz resvalar a sua lava criativa sobre os espasmos do burguesismo neo-capitalista que vitima a facção mais visível do hip-hop actual. É um colectivo pan-americano de jovens produtores e MCs, que se juntaram em 1997 em San Francisco, na Califórnia, e constituem um regimento de oito unidades: Alias, Doseone, Jel, Odd Nosdam, Passage, Sole, the Pedestrian, e ainda Why? As torrentes de som que, individualmente ou em pequenos agregados, eles edificam formam um acervo discursivo que se deixa encharcar de referências sampladas, inscrições temporais inusitadas, fragmentos de poesia algo obscurantista e a roçar o ideário beat de outros tempos – talvez William S. Burroughs lhes tenha servido de tutor espiritual.

Nos idos de 90, à frente dos Live Poets e depois de tentar editar os seus próprios discos, Sole mostrou-se desencantado com o que havia conseguido na Costa Leste dos Estados Unidos, e começou a considerar outras áreas de exposição, diferentes circuitos para a sua música. Optou, então, por se mudar juntamente com Alias, que o acompanhava na formação, para San Francisco, onde pululavam projectos experimentais que juntavam MCs de Minneapolis e do Canadá a rappers locais. Diz o edital da época que o primeiro conhecimento travado foi com Slug, um miúdo do Minnesota confesso admirador dos Live Poets. O trio decidiu trabalhar com o produtor Doseone nos Deep Puddle Dynamics, espécie de sémen gerador do clã Anticon.

Os artistas que fazem parte do agrupamento são encorajados a gravar tudo o que queiram e a trabalhar para outras etiquetas se assim o desejarem. No total, beneficiam em 50% de todo o material lançado através da Anticon. Ainda nos tempos formativos, Sole consegue um acordo com a Caroline Records, que passa a assegurar a distribuição dos primeiros singles e compilações com o selo do colectivo, em edições limitadas. Mas a vaga de criticismo destrutivo e balofo não tardou, provindo de MCs do underground nova-iorquino, designadamente El-P e elementos dos Company Flow. Do outro lado, John Herndon (dos Tortoise) tornou-se num dos promotores mais entusiastas da família Anticon junto da imprensa, que começou a gastar mais tinta na análise dos discos editados.

A Internet (www.anticon.com) mostrou-se uma portentosa ferramenta a consolidar o seu crescimento sustentado e levaria o projecto a estabelecer uma parceria com a editora de acid jazz Mush, que adquiriu o exclusivo da distribuição dos álbuns da formação. Talvez seja hip-hop de vanguarda ou, apenas, um conjunto de seres pensantes que não deixam a massa cinzenta de molho quando se trata de fazer música. É, necessariamente, um nicho mediático, um géiser distinto nos falaciosos meandros do hip-hop massificado. Do compromisso político de Alias à instrumentação lapidar de Dosh, ou do contorcionismo de Odd Nosdam à descoberta dos Themselves, que reúnem Doseone e Jel, este agregado familiar soa a liturgia do gueto com um travo de conto de Natal narrado à lareira. Por vezes, é como se Nick Cave se tivesse dedicado ao hip-hop. Ou os dignatários do spoken word tivessem acrescentado samples ao seu registo. Anticon é, porventura, o equivalente ao indie rock na galáxia hip-hop. Mas continua um segredo.

CINCO ÁLBUNS FUNDAMENTAIS

Alias Eyes Closed 2003
Com cinco temas apenas a atestar a destreza no trabalho de produção, o EP “Eyes Closed” é um mostruário rítmico penetrado por estruturas instrumentais complexas e sintetizações magoadas. Flutuações e sequências marcadas por teclados em cascata sónica e cordas soltas. É um trabalho difuso de conceitos e formas, com inserções de camadas de som a três dimensões.
Dosh Dosh 2003
Jogos de instrumentação em contorções espiraladas, gravados na cave de Martin Dosh. Uma colecção de loops de jazz interrompidos por material samplado e batidas downtempo, guarnecidas por sujidade. Dosh utilizou velharias para produzir este disco, daquelas cobertas de poeira que só se encontram em divisões esquecidas da casa. Válvulas analógicas a sincopar as refracções ambiente, oriundas de um mundo perdido.
Odd Nosdam No More Wig For Ohio 2003
De seu nome Dave Madson, o alter-ego Odd Nosdam é um excêntrico monge copista das novas tendências. De referências algo afastadas dos bancos da escola do hip-hop, começou por trabalhar com os Greenthink até que estes decidem torná-lo membro a tempo inteiro e fundar os Clouddead. Nosdam produziu muitos dos trabalhos que saem pela Anticon e concebeu grande parte do grafismo da editora. A proposta é um melting pot de adornos estilísticos, um olhar infectado, surrealista sobre os pequenos universos.
Themselves Them 2000
À data da edição deste álbum, os Themselves eram ainda designados por Them. Jel compõe os distintos retalhos sonoros preenchidos pelo registo evocativo de Doseone. A manta lírica descortina um imaginário da urbe em arrebatada palpitação a reclamar uma casa na pradaria, longe dos fantasmas e dos saqueadores de espírito da cidade. A voz aproxima-se da ingenuidade infantil e ecoa contra as paredes da caverna dos pesadelos.
Why? Oaklandazulasylum 2003
Jonathan Wolf é um inadaptado da vida, que trova sobre o precipício citadino em harmonias grotescas e sobrepostas e melodias lívidas. A sua voz é nasalada e despida, colocada sobre batidas multimodulares. Cada partícula é submetida a um arranjo meticuloso, um apuramento técnico que resulta numa mistura orgânica e quase acústica.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

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