Crass: comei, isto é o meu punk
· 28 Fev 2019 · 22:38 ·


Ever get the feeling you've been cheated?


Quando John Lydon pronunciou estas palavras no último concerto da digressão dos Sex Pistols pelos Estados Unidos, em 1978, foi quase como uma declaração de óbito ao punk. Movimento, género musical, moda passageira, chamem-lhe o que quiserem: aquilo que tinha nascido pouco antes pelas mãos de Malcolm McLaren e que havia inspirado tantos e tantos a fazer alguma coisa de relevante nas suas vidas, que não fosse apenas o tique-taque opressor da rotina capitalista, estava morto.

Só que a história ensina-nos que as coisas não são tão lineares quanto isso. O punk pode ter morrido ali, mas continuou pelas mãos de quem sentiu a sua energia como um choque eléctrico. Mas, para outros, morreu muito antes - quando o supracitado capitalismo lhe deitou as garras e o tornou num objecto de consumo para jovens alienados, no Reino Unido e não só. E podemos, até, argumentar que nunca existiu realmente: se os Sex Pistols e o punk nasceram de um empresário como McLaren, não foi sempre apenas um produto, um material - e nada mais do que isso?



É aí que entram os Crass. Formados em 1977 a partir da Dial House, espécie de comuna localizada em Essex (ainda que os seus membros insistam, em The Story Of Crass [George Berger, 2008], que não eram de facto uma comuna), o colectivo / banda que juntou vários estudantes de Arte e membros dos EXIT, grupo avant-garde dos anos 70, olhou para o punk não como um produto, mas como um modo de vida. O punk em geral podia não ser alheio às mais diversas causas sociais e políticas - veja-se os Clash ou o Rock Against Racism como exemplos -, mas os Crass praticavam literalmente o que pregavam: feminismo, causas ambientais, anti-fascismo, sempre sem ceder perante o rótulo anarquista - dizem eles no supracitado livro que, à altura, nem sequer tinham lido Bakunin.

Não que as bibliografias importem muito quando se tem o método: uma música feroz, qual escarro na cara de todas as boys bands que os Sex Pistols eram, que os Clash podiam ser ou que a new wave foi no seu todo, à qual se aliava a propaganda contida em stencils e panfletos, nas suas roupas negras e militarizadas, no seu símbolo - uma ouroboros em torno de uma cruz -, na forma como viviam - comunitária e sem nada dever a ninguém - e na forma como expunham o seu produto - sempre sem que alguém pagasse por ele mais do que o que deveria.

The Feeding Of The 5000 é disso exemplo. Um disco com 17 faixas que não custou mais que duas libras a quem o quisesse comprar, e editado um ano após Lydon matar o punk, continha ataques viscerais tanto ao Cristianismo ("Asylum") como ao estado ("Do They Owe Us A Living?") como ao punk em geral ("Punk Is Dead"), sem dispensar algum humor e, claro, o desprezo total pela boa-educação: os Sex Pistols diziam fuck this and fuck that, mas eram meninos de coro; os Crass diziam of course they fucking do!, e via-se que estavam a falar a sério. Não eram marioneta ou manipulador: eram eles próprios.

O primeiro álbum dos Crass ainda hoje soa a uma verdadeira chapada na cara, apesar de (ou derivado de) conter uma música estupidamente rudimentar, até mesmo para o padrão punk. O lado A, num disco que ignorou a convenção e fez de qualquer um dos lados o lado A, é quase perfeito: vai de "Asylum" a "G's Song" (sendo que "Asylum" só foi incluída numa reedição de 1980, após a fábrica de prensagem irlandesa para onde o álbum foi enviado a ter considerado "blasfema"), e tem logo à segunda o ritmo e as palavras de "Do They Owe Us A Living?". A mesma canção surge novamente no final de The Feeding Of The 5000, já depois dos gritos de "Women" ou "So What".

Era o ponto de partida de uma guerra que só terminaria em meados dos anos 80, quando os Crass decidiram (mal ou bem, está por apurar) que já não tinham grande coisa para dizer. O cansaço também havia tomado conta das suas vidas, e o diabo - na pele de Margaret Thatcher - continuava a controlar o seu mundo britânico apesar de tudo aquilo que se haviam predisposto a ensinar às pessoas. À altura esses ensinamentos podem ter caído em ouvidos moucos - mas é para isso que serve o futuro: para aprender com os erros do passado. E para chegarmos à conclusão de que a filosofia, muitas vezes, nada pode contra o som.

My anarchist tract is my life. I'm not actually interested in what Bakunin or Proudhon said ~ Penny Rimbaud


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