Lindo Sonho Delirante: relatos de um Brasil musical infinito
· 09 Jan 2019 · 11:56 ·
Com o primeiro volume, Bento Araújo propôs-se contar a história de uma das mais fascinantes páginas da história da música. Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975), lançado em 2016reunia 100 discos de um período verdadeiramente efervescente da música brasileira. De tal maneira efervescente que agora decidiu publicar um segundo volume da mesma história.

O segundo tomo, Lindo Sonho Delirante vol.2: 100 discos audaciosos do Brasil (1976-1985), conta a mesma história mas com outra centena de discos, lançados entre 1976 e 1985, que o mundo precisa urgentemente de (re)descobrir. De Tom Zé, a A Barca do Sol, de Cátia de França a Hermeto Pascoal, de Lula Cortês, numa recapitulação que termina precisamente em 1985, ano que marca o fim da ditadura militar no país.

A conversa com o jornalista, colecionador e escritor revela a sua visão acerca desses anos dourados da música brasileira, tão conturbados quanto produtivos, e relaciona-os com os dias de hoje, caracterizando os públicos e o meio. 



Está aí o segundo volume do Lindo Sonho Delirante. Como foi chegar até ele?
 
Foi muito interessante e também gratificante. A boa repercussão do primeiro volume me deu uma energia incrível para trabalhar neste novo volume. O apoio de centenas de amigos, do mundo todo, viabilizou o livro via crowdfunding, então estou muito feliz com o resultado. Desta vez temos 100 discos lançados entre 1976 e 1985, os últimos anos da ditadura militar no Brasil. São discos não somente psicodélicos, mas sim “audaciosos” em sua própria natureza, seja dentro do folk, fusion, rock progressivo, música eletrônica experimental, minimalismo, Vanguarda Paulistana etc. 
 
Em que momento percebeste que era obrigatório este volume dois?
 
Desde a concepção do projeto, na verdade, há cerca de três anos atrás. Minha ideia original era contar esta história até os dias de hoje, portanto sempre me pareceu fundamental adentrar também na segunda metade da década de 70 e na primeira metade dos anos 80. 
 
Quais são os critérios principais destes livros? O que é que pesa na altura de incluir ou não determinado disco?
 
Acaba sendo um critério de gosto pessoal, mas tentei ao máximo contextualizar o disco com o período em que foi lançado e também com sua importância hoje, olhando em retrospecto. O que pesa também é o fato de quanto determinado trabalho foi “audacioso” para o seu tempo. É essa transgressão que amarra a história toda. 
 
É impossível não falar disto. O título dos livros remete obviamente para o LSD. Achas que as drogas, juntamente com uma forte necessidade de libertação, foram um combustível essencial na criação desta música?
 
Creio que sim, ainda mais pelo fato desta música ter sido produzida em tempos de ditadura militar no Brasil. As drogas serviam de combustível também para essa libertação, uma aliada à fuga da dura realidade que vivíamos. Creio que os 200 discos contidos nesses dois volumes só poderiam ter sido concebidos debaixo daquele cenário.
 
É impossível não falar igualmente das capas dos discos. Há algo que as una na sua maioria? Algum elemento, algum elo entre os seus criadores, alguma relação com outras artes? 
 
Acho que o elemento “antropofágico” une muitas dessas capas. Vários designers e capistas herdaram esse elemento dos tropicalistas e dos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 22. Eles recebiam a influência do primeiro mundo, deglutiam tudo e devolviam essa arte como algo novo, genuinamente brasileiro, como produto de exportação. O Rogerio Duarte, por exemplo, surgiu envolto a esses mandamentos, nos anos 60, e influenciou muita gente que veio depois. 


 
Quanto é que esta música diz à grande maioria do brasileiros. Ou seja, o grande público reconhece alguns destes nomes, celebra o seu legado?
 
Infelizmente não. Mas creio que não seja um demérito apenas dos brasileiros, pois acredito que no mundo todo ocorra algo parecido. O grande público sempre parece interessado em outra coisa, em fenômenos de massa. O underground sempre será o underground, em qualquer lugar do planeta. Então a celebração a esse legado sempre irá existir, mesmo que dentro de nichos. Eu não acho isso ruim, me sinto até confortável com essa situação, pois desde os anos de poeira Zine, meu fanzine bimestral que durou de 2003 a 2016, vivenciei isso tudo e sei da força da cultura underground. 
 
Achas que os brasileiros são um povo que celebra o seu passado? Ou seja, os brasileiros são um povo saudosista?
 
Apenas uma pequena parte parece celebrar, ou se importar, com o passado. Sendo filho de pai português, os portugueses me parecem um pouco mais saudosistas que os brasileiros. Acho isso bonito, é algo que certamente também está no meu sangue. Infelizmente o Brasil não se importa como deveria com seu passado musical. É extremamente difícil conseguir informações confiáveis sobre esse período abordado nos meus livros. Muitas vezes eu consigo melhores caminhos com colecionadores e pesquisadores fora do Brasil. O Japão é sempre uma excelente fonte de informação sobre a música brasileira e muitos dos nossos discos mais raros estão lá. 
 
Achas que esta nova geração de músicos brasileiros tem a noção do quanto deve a este período criativo no país?
 
Creio que sim. Conheço muitos músicos jovens que se dedicam bastante a essa pesquisa e isso me deixa muito feliz. Acho que aqueles que estão ligados à arte, de alguma forma, acabam se encantando por esse período. Aconteceu muita coisa, muita riqueza por todo o Brasil. 
 
Olhando para trás, como é possível que um dos períodos mais ricos da música universal tenha saído de um momento tão conturbado da história do Brasil?
 
Um momento conturbado geralmente é terreno fértil para a arte. Acho que toda essa diversidade e riqueza são a cara do Brasil, desde o descobrimento. Costumo dizer que o Brasil é um país psicodélico por natureza. O Carnaval, a alegria eufórica do povo, a fusão de pessoas e culturas do mundo todo, as cores, o Sol impiedoso... Sem contar ícones como Grande Otelo, Chacrinha, Carmen Miranda, Glauber Rocha. É muita psicodelia (rs). 
 
Acreditas que algo semelhante possa acontecer no Brasil nos próximos tempos? Achas que a música de protesto ainda existe, mas de uma outra forma?
 
Sim, tenho certeza que teremos um período novamente muito interessante nesse sentido. A arte está aí para resistir e confrontar qualquer tipo de repressão e preconceito. Não faz sentido os brasileiros negarem sua diversidade. Vamos continuar lutando pela liberdade e pelo amor. 
 
Como vês o "regresso" do vinil? Parece-te mais um revivalismo ou acreditas que o formato voltou mesmo de vez?
 
Vejo como algo louvável, mas também curioso. Pessoas novamente se dedicando a escutar música no formato físico, parando um pouco as suas rotinas atarefadas e corridas. Mesmo tendo um caráter revivalista, acho importantíssimo as novas gerações criarem essa relação afetiva com o vinil. Passar isso para os nossos filhos e tudo mais, acho isso mágico. 

 
Como é o fenómeno no Brasil? Ouvi dizer que há fábricas a reabrir...
 
Sim! Por um tempo só tínhamos a Polysom, no Rio de Janeiro, mas a Vinil Brasil surgiu com força total, em São Paulo, com uma proposta muito interessante e acessível. E outras estão surgindo. O panorama é animador. 
 
Se tivesses que escolher um disco apenas de todos estes. Um apenas, que resumisse este período na perfeição. Qual seria?
 
No fator psicodélico seria o Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. Considero este o trabalho mais importante da música psicodélica brasileira. 
 
Vais andar a mostrar este projecto pela Europa nos próximos tempos. Fala-nos um pouco disso...
 
Acabei de voltar de uma turnê de lançamento do livro pela Europa. Visitei cinco países em três semanas, apresentando palestras sobre a minha pesquisa, sessões de Q&A, e DJ sets com os amigos Rasmus Schack/Epic Vinyls From Brazil e D.Vyzor. Foi muito divertido e gratificante, é uma conquista que batalhei por muito tempo. Espero voltar no próximo ano e fazer o lançamento em Portugal. Será como realizar um sonho poder lançar meu livro por aí. Faz mais de 20 anos que não vou a Portugal e a saudade é imensa...
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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