Da América com garantia: 100% Veludo
· 21 Fev 2017 · 23:23 ·
À centésima, é pecaminoso ignorá-los. E impossível não exprimir um honesto elogio. Primeiro, são de uma elegante reserva artística: demora algum tempo a perceber que há muito mais para além de um logótipo engraçado, marteladas sedutoras e o barulho das luzes nas pistas de dança. Segundo, o substancial do que editam é em cassete: a modernidade está na atitude da música. Funcionarem ao contrário – claramente anti-uniformização – é o que os tornam exóticos.
O catálogo é extenso: o ponto de partida foi uma mixtape em 2011 intitulada 100% Silk; e a sonoridade da empresa estabeleceu-se na House-music, é a sua personalidade – havendo, contudo, pontuais momentos em que se aventurou pelo techno ou pela electrónica experimental.
Ao longo dos seis anos de existência, foram para além da música editada. Eles organizaram eventos um pouco por todo o mundo tentando ligar entre si pequenas comunidades com as mesmas sensibilidades musicais, com o mesmo intento em devolver à cultura underground o velho espírito, nunca forçando nostalgia balofa.
SILK, o documentário sobre a editora apresentado em 2013 no CPH:DOX - Copenhagen International Documentary Festival, procurou retratar a atitude da casa, percebendo-se que, na visão deles, há outras formas de mover o corpo, sem pretensiosismos provocar outras experiências sensoriais; ligar a arte contemporânea – conscientes de eventuais contradições – à clube scene. Talvez também se trate de dar sobriedade onde normalmente existe excesso.
Ouvir parte do catálogo – e não é possível ouvir tudo porque muito foi edição limitada, e também porque o You Tube não tem tudo – é um exercício que não denotará qualquer perda tempo. Os feiticeiros sonoros estão acima da média; trabalhos que revelam esforço na concepção sem que tal implique um resultado final demasiado elaborado, pesado. Ouvindo os discos editados em 2016 (Zen Travel de Kaazi, Nightmare de Bludwork ou Vague Response de Akasha System), ficamos perfeitamente conscientes de que o que existe, existe porque ainda há quem se mova exclusivamente pelo amor à cultura que circunda o género.
E é a glorificação da House-music o que se sente ao abrir as portas desta label imperdível, irmã da Not Not Fun, ambas idealizadas e geridas por Amanda Brown, uma miúda gira cheia de presença.
Ao site Red Bull Music Academy Daily, a também cabecilha do colectivo LA Vampires, epigrafa o propósito do empreendimento: I started 100% Silk because I wanted a label project where I could say this is for the best in dance music as I see it. This is my taste, my pleasure, and I’ll never consider a drone LP or free folk or noise or ambient even. The underground is obviously overlooked from a mainstream perspective, but within the underground, dance is just now finally being given the floor, the opportunity to excite people who would normally mock it for not being “weird” or “outsider” enough. I wanted to help propel underground dance because I feel like we’re on the brink of another golden era.
Amanda Brown olha para a substância, a essência, raro nos dias em que, neste mundo de tontaria tecnológica, estupidificado por “factos alternativos”, o imediatismo é glorificado, a abjecção decretada convenção de salvação dos desmoralizados. Mas o mundo ainda não está a assim tão pobre – venham Trumps, Theresa Mays, Putins, e os filhos da puta todos que querem reduzir a Humanidade à imbecilidade.
Variedade. Sem preconceitos. E escolher o melhor, o génio, para iluminar e evoluir. A 100% Silk é sobre oportunidades para os eclécticos anónimos. E proporcionar ao público desconfiado a oportunidade de perceber que há mais para além da espuma, que há música que vem e fica.
A House-music veio há trinta anos e ficou – era do gueto, black music, e acabou de todas as cores, em todas as ruas do planeta. Mesmo mal tratada pelo mercado sôfrego, ela resiste, dando-nos, ocasionalmente, singulares exemplos de unidade, dignidade e génio. A 100% Silk trata a música House como uma Senhora.
Como já referido, Sensate Silk é a edição 100 da editora. E não se pense que Amanda Brown tratou de fazer o best of. Bem pelo contrário. Metade dos nomes aqui alinhados são estreiantes; e que estreia as de, por exemplo, Westcoast Goddess, Helios Mode ou Parc – juventude com futuro. A outra metade é constituída de produtores mais experientes que editam inéditos; alguns deles regressam à casa (Golden Donna ou Badia); outros, como Sage Caswell ou Keita Sano – que em 2015 editou o interessante Holding New Cards pela 1080p, label também muito dada a cassetes – marcam presença na 100% Silk a primeira vez.
Esta compilação espelha genuinamente o espírito da editora, e do que está para acontecer – afinal, Amanda tem a convicção que estamos à beira de uma nova era de ouro do underground. Sente-se o som de Chicago revigorado, desafiador, mas com os maneirismos da génese omnipresentes. Dentro de Sensate Silk há música, como arte. Grande arte. Faz tão bem ouvi-la na pista de dança às três da manhã como na tarde seguinte sentado no sofá com uma caneca de chá na mão.
O exótico registo desta prodigiosa comunidade de produtores é amiúde sujo, de distorções técnicas, rude, ancestral; afinal de contas esta música foi entalada numa cassete; contudo, meus caros, excelência, excelência! 100% veludo. Vida longa a Amanda Brown, que não é apenas gira, e a todos os seus pertinentes amigos.
Aproveitamos e deixamos uma dica para aquilo que está a caminho: já no próximo mês, o russo Åmnfx (faustosa abreviatura de Amen to FX) edita Moscow Beat, o seu segundo álbum de originais, sucessor de Vision One, editado o ano passado em cassete pela parisiense THRHNDRDSVNTNN (por outras letras, THRee HuNDReD SeVeNTy NiNe). Confiram o vibrante aperitivo – " We Got It (I've Been Saving Up All Day)" –, mais um petardo com o selo de garantia da 100% Silk. Ámen!
NR: Sendo uma justa celebração da 100ª edição, Sensate Silk, acabado de sair, é assombrado pelo trágico acontecimento no Ghost Ship, Oakland, a 2 de Dezembro de 2016. Nesse dia, trinta e seis pessoas perderam a vida num incêndio que deflagrou no armazém que acolhia o evento de house-music onde a 100% Silk era parte do programa; Nackt e Cherushii, produtores ligados à editora, foram duas das vítimas. No Facebook, Armanda Brown escreveu: "What happened in Oakland is an unbelievable tragedy, a nightmare scenario. Britt and I are beside ourselves, utterly devastated. We are a very tight community of artists and we are all praying, sending love and condolences to everyone involved and their families".
Rafael SantosO catálogo é extenso: o ponto de partida foi uma mixtape em 2011 intitulada 100% Silk; e a sonoridade da empresa estabeleceu-se na House-music, é a sua personalidade – havendo, contudo, pontuais momentos em que se aventurou pelo techno ou pela electrónica experimental.
Ao longo dos seis anos de existência, foram para além da música editada. Eles organizaram eventos um pouco por todo o mundo tentando ligar entre si pequenas comunidades com as mesmas sensibilidades musicais, com o mesmo intento em devolver à cultura underground o velho espírito, nunca forçando nostalgia balofa.
SILK, o documentário sobre a editora apresentado em 2013 no CPH:DOX - Copenhagen International Documentary Festival, procurou retratar a atitude da casa, percebendo-se que, na visão deles, há outras formas de mover o corpo, sem pretensiosismos provocar outras experiências sensoriais; ligar a arte contemporânea – conscientes de eventuais contradições – à clube scene. Talvez também se trate de dar sobriedade onde normalmente existe excesso.
A compilação que dá o mote a este texto, Sensate Silk, edição 100 da editora, reflecte o imperativo único da 100% Silk no que à música diz respeito: venham de onde vierem, ideias de qualidade são exigidas. Sediada em Los Angeles, muitos são os desconhecidos que entram nesta casa com calorosas boas-vindas e passam a fazer parte da comunidade. Maria Minerva, Golden Donna, Ital ou Octo Octa serão os projectos mais rodados na club scene underground, já com maior projecção global. Os restantes são dignos anónimos que, por carolice, produziram um EP ou um mini-álbum e nada mais deles se ouviu, ou se sabe; fazer bem demora tempo – há coisas que o software simplesmente não inventa, ou resolve.
Ouvir parte do catálogo – e não é possível ouvir tudo porque muito foi edição limitada, e também porque o You Tube não tem tudo – é um exercício que não denotará qualquer perda tempo. Os feiticeiros sonoros estão acima da média; trabalhos que revelam esforço na concepção sem que tal implique um resultado final demasiado elaborado, pesado. Ouvindo os discos editados em 2016 (Zen Travel de Kaazi, Nightmare de Bludwork ou Vague Response de Akasha System), ficamos perfeitamente conscientes de que o que existe, existe porque ainda há quem se mova exclusivamente pelo amor à cultura que circunda o género.
E é a glorificação da House-music o que se sente ao abrir as portas desta label imperdível, irmã da Not Not Fun, ambas idealizadas e geridas por Amanda Brown, uma miúda gira cheia de presença.
Ao site Red Bull Music Academy Daily, a também cabecilha do colectivo LA Vampires, epigrafa o propósito do empreendimento: I started 100% Silk because I wanted a label project where I could say this is for the best in dance music as I see it. This is my taste, my pleasure, and I’ll never consider a drone LP or free folk or noise or ambient even. The underground is obviously overlooked from a mainstream perspective, but within the underground, dance is just now finally being given the floor, the opportunity to excite people who would normally mock it for not being “weird” or “outsider” enough. I wanted to help propel underground dance because I feel like we’re on the brink of another golden era.
Amanda Brown olha para a substância, a essência, raro nos dias em que, neste mundo de tontaria tecnológica, estupidificado por “factos alternativos”, o imediatismo é glorificado, a abjecção decretada convenção de salvação dos desmoralizados. Mas o mundo ainda não está a assim tão pobre – venham Trumps, Theresa Mays, Putins, e os filhos da puta todos que querem reduzir a Humanidade à imbecilidade.
Variedade. Sem preconceitos. E escolher o melhor, o génio, para iluminar e evoluir. A 100% Silk é sobre oportunidades para os eclécticos anónimos. E proporcionar ao público desconfiado a oportunidade de perceber que há mais para além da espuma, que há música que vem e fica.
A House-music veio há trinta anos e ficou – era do gueto, black music, e acabou de todas as cores, em todas as ruas do planeta. Mesmo mal tratada pelo mercado sôfrego, ela resiste, dando-nos, ocasionalmente, singulares exemplos de unidade, dignidade e génio. A 100% Silk trata a música House como uma Senhora.
Como já referido, Sensate Silk é a edição 100 da editora. E não se pense que Amanda Brown tratou de fazer o best of. Bem pelo contrário. Metade dos nomes aqui alinhados são estreiantes; e que estreia as de, por exemplo, Westcoast Goddess, Helios Mode ou Parc – juventude com futuro. A outra metade é constituída de produtores mais experientes que editam inéditos; alguns deles regressam à casa (Golden Donna ou Badia); outros, como Sage Caswell ou Keita Sano – que em 2015 editou o interessante Holding New Cards pela 1080p, label também muito dada a cassetes – marcam presença na 100% Silk a primeira vez.
Esta compilação espelha genuinamente o espírito da editora, e do que está para acontecer – afinal, Amanda tem a convicção que estamos à beira de uma nova era de ouro do underground. Sente-se o som de Chicago revigorado, desafiador, mas com os maneirismos da génese omnipresentes. Dentro de Sensate Silk há música, como arte. Grande arte. Faz tão bem ouvi-la na pista de dança às três da manhã como na tarde seguinte sentado no sofá com uma caneca de chá na mão.
O exótico registo desta prodigiosa comunidade de produtores é amiúde sujo, de distorções técnicas, rude, ancestral; afinal de contas esta música foi entalada numa cassete; contudo, meus caros, excelência, excelência! 100% veludo. Vida longa a Amanda Brown, que não é apenas gira, e a todos os seus pertinentes amigos.
Aproveitamos e deixamos uma dica para aquilo que está a caminho: já no próximo mês, o russo Åmnfx (faustosa abreviatura de Amen to FX) edita Moscow Beat, o seu segundo álbum de originais, sucessor de Vision One, editado o ano passado em cassete pela parisiense THRHNDRDSVNTNN (por outras letras, THRee HuNDReD SeVeNTy NiNe). Confiram o vibrante aperitivo – " We Got It (I've Been Saving Up All Day)" –, mais um petardo com o selo de garantia da 100% Silk. Ámen!
NR: Sendo uma justa celebração da 100ª edição, Sensate Silk, acabado de sair, é assombrado pelo trágico acontecimento no Ghost Ship, Oakland, a 2 de Dezembro de 2016. Nesse dia, trinta e seis pessoas perderam a vida num incêndio que deflagrou no armazém que acolhia o evento de house-music onde a 100% Silk era parte do programa; Nackt e Cherushii, produtores ligados à editora, foram duas das vítimas. No Facebook, Armanda Brown escreveu: "What happened in Oakland is an unbelievable tragedy, a nightmare scenario. Britt and I are beside ourselves, utterly devastated. We are a very tight community of artists and we are all praying, sending love and condolences to everyone involved and their families".
r_b_santos_world@hotmail.com