The Roots of Rastafari
· 29 Set 2015 · 00:12 ·


Olhem para Leste, para África, onde um negro será coroado Rei. Marcus Garvey.

Por mais entediante que a História seja para alguns, ela é essencial para perceber o mundo. Ela permite entendimentos; permite – por exemplo – que a velha pergunta do “porquê” de determinadas coisas remanesça no sentido existencial de cada um. Porque é que o mundo é como é, como se transformou desde que abandonamos os galhos em África e proliferamos ao ponto de sermos uma praga no planeta. A História, a memória factual, permite respostas. Permite assimilações profundas.

A música não é apenas música – por mais que o mercado sôfrego hoje nos tente impingir as pastilhas elásticas da bestialidade capitalista. Ela é memória. Ela é um sentido álbum de recordações anímicas e factuais. E cada povo tem a sua natural forma de expressar o espírito, a crença, a herança; enfim, toda a sua cultura.

É a elementar identidade. Por aqui temos o fado, que finalmente passou a ser um género de apreciação intergeracional. Gostar de fado deixou de ser foleiro porque se assumiu de vez a genuína harmonia do murmúrio que está no nosso código genético.

E o motivo porque estamos aqui a falar de música como álbum de recordações, como uma poderosa manifestação de identidade? O porquê das coisas; da História; da fé?

Jamaica. Uma pequena ilha nas Caraíbas. A sua música. Comummente associada ao bacano Bob. À ganza. Paraíso. E a uma coisa-ideal chamada Rastafari. Bob Marley resumiu amor-justiça-transcendência-alma. E não é à toa que ainda hoje seja o gigantesco embaixador da musicalidade da Jamaica. Com os The Wailers criou magníficos mantras – e prosseguiu-os individualmente; verbetes espirituais em torno do Rastafari, uma religião no qual acreditava.

Uma religião que ainda hoje existe. Com dicionário salvaguardado: Babylon é materialidade malvada, a escravizadora; capitalismo. Jah é Deus, o salvador. Zion é o paraíso prometido; a Etiópia.

O Rastafari não se resume ao mero “fuma e sê feliz”. Amor, paz, curte. Muitos acham a coisa cool, como uma desculpa para um eventual escape de ocasião. Há ideias pré-concebidas hoje em dia. Falta a História para instruir; para fumar devidamente a ganza ao som do reggae devia ser obrigatório um pequeno estudo. Para ser directo, e desmistificar: o Rastafari não inclui um manual brejeiro para ter pedradas perfeitas; fumar não tem a finalidade básica de abstracção da realidade plana mas sim almejar uma existência mais próxima da natureza, e de Deus; plena.



O pacifismo do Nyabinghi (numa teocracia global de complexos entendimentos que ainda revolvem outras complicadas interpretações bíblicas) confundiu-se algures com a ideologia de Marcus Garvey do “back to Africa”, da raça escravizada que tem de regressar às origens e esmagar as forças colonizadoras da velha Europa. O príncipe Haile Selassie I, tornado Rei da Etiópia em 1930, só queria uma nação justa, equilibrada, entre Deus e a Terra. Era à época uma nação de que nem os ingleses queriam saber até Mussolini achar pertinente invadir motivado por um qualquer capricho expansionista.

Haile Selassie. O prometido, o Rei de reis, o Imperador, o representante supremo de Deus na Terra por directa descendência de Salomão – entre outros títulos grandiosos (que um negro nunca teve!) –, resistiu ao ímpeto conquistador. O eleito perdeu. Mussolini vingou; tal como fascismo maldito. Haile Selassie foi forçado a exilar-se face à impassibilidade da Sociedade de Nações (os supostos guardiões da paz, que se tornaram obsoletos a toda escala muito antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial; assim permitindo todos os abusos que levaram ao impensável).



Eram de estranhar os ressentimentos históricos entrelinhados pelos pensadores na corte de Haile Selassie em relação ao homem branco? Não justificaria o desejo de justiça humana, expondo nos locais próprios argumentos civilizados que evitassem as rotulagens racistas o máximo possível? Eram tolerantes em nome de Deus, mas... Certo era ambicionarem justiça divina contra a opressão dos europeus, a sua constante violência sobre o povo, escravizado em nome de ideais completamente estrangeiros.



Ras = Rei. Tafari, o primeiro nome de Makonnen Woldemikae, nascido em 1893. Rastafari.

Haile Selassie retomou o trono em 1941 com a mobilizada, organizada, resiliente massa etíope, e com a inevitável ajuda dos ingleses. Eliminado o inimigo externo, surgiram os inimigos internos. Com a paz veio a irremissível divisão fratricida. Os discordantes. Os comunistas. O apodrecimento. O consensual líder, guerreiro, patriota, tornou-se alvo de um golpe militar que o destituiu. Selassie morreu em Agosto de 1975, morte ainda hoje envolta em incerteza: morte natural ou assassinado? Mais um mito.

A ideologia do Rastafari nasceu na Jamaica já Haile Selassie dessecava como imperador na Etiópia. Apesar dos intrincados entrançamentos políticos etíopes, a imagem do eleito, do rei, o resistente, o pensador, o líder espiritual que traria os escolhidos de volta à terra primordial, prevaleceu. De certeza para o exterior. Para o mundo da esperança. Haile Selassie era – e será para sempre para os acólitas rasta – o messias. O reverenciado: é a fé de um nicho de pessoas que viram probabilidade num homem que tinha presença inspiradora, sublime. Alguém que não se dispôs a trair a alma, ou a visão para uma nação, ou da Humanidade.



E é por tudo isto é que o Rastafari é um substanciado manifesto religioso e social (e algum pendor político). Um que moldou um povo, uma cultura, um pais.

Com a devida consciência. Competência. Eficiência. A Soul Jazz Records demonstra uma vez mais que a História é importante. Que a música é importante, ou melhor, é essencial como álbum de recordações anímicas e factuais. Não será a única por aí a esforçar-se com honesta garra na arte da arqueologia musical. Mas os anos a que já se dedica ao ofício, o estilo que imprimiu, colocam-na numa graduação que nem musicólogos se atrevem a contestar.

Há muito que a Soul Jazz Records dedica muita da sua atenção à música da Jamaica (a editora iniciou operações em 1993). Ganhou absoluta credibilidade quando a série Studio One começou a recuperar tesouros perdidos; pérolas locais; muitas talhadas sem ambições de eternidade, mas encantadoras: afro, roots, r&b local, soul, funk, calypso, rocksteady, ska, as mutações reggae, o dub.

É assertivo dizer que ainda hoje é imensurável a riqueza produzida naquela pequena ilha das Caraíbas entre os anos 1950 e 70.

The Roots of Rastafari – The Dreads Enter Babylon 1955-83 é mais um exemplo do tempo que a editora investe na Jamaica a descobrir pérolas perdidas em sótãos ou em caves, ou noutro recôndito lugar sem particular código postal. Esta antologia reúne e alinha vinte músicas (mais um livrinho a contar todos os pormenores). Expõe simples manifestações de fé. E muito ritmo, groove puro, ancestralidade. Count Ossie, o que mais se destaca neste alinhamento, foi um convicto mensageiro que advogou a divindade; fê-lo recorrendo ao talento que lhe pulsava nas veias: o dum exímio baterista - não se estanhe que os seus beats se assemelhem (metaforicamente) a batidas dum coração a almejar pura liberdade espiritual.

Uma das virtudes desta soberba colecção não é focar-se no reggae, na relação romântica que tem com o Rastafarismo. Ela existe, sim. É de conhecimento comum. Aqui há um mas... E o "mas" aponta para um antes da estilização que Bob Marley ou Peter Tosh cimentaram. The Roots of Rastafari – The Dreads Enter Babylon 1955-83 dá-nos uma clara noção que existe uma religiosidade na música da Jamaica bem antes do composto ska-raggae almejar romper a casquinha da semente. Também é documentar como um povo sobrelevou-se, e elevou a sua maneira de estar. Uma admirável revolta controlada contra os colonizadores: os ingleses saíram da Jamaica em 1962 sem contestação.

A Soul Jazz não descurou a fonte primordial, que não é música religiosa, mas é música com Deus: a alma Nyabinghi, o ritmo e o cântico ancestral que liga dois continentes: um onde o povo negro nasceu, o outro onde foi explorado, vezes sem conta, independentemente da cor da bandeira que se sacudia ao sabor da brisa quente e húmida no mastro da praça principal de Kingston.

Perdoem o entusiasmo: mas esta compilação é mesmo ESSENCIAL.

Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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