Ainda há um toque francês?
· 31 Mai 2015 · 19:01 ·


Há poucos meses interroguei-me: o que foi o french touch? E ainda estou para perceber o que a coisa significou para a música de dança quando se meteu no mesmo saco St. Germain, Daft Punk, Etienne De Crecy ou Air. A geografia. As modas. O som. A obscuridade dos rótulos. Hoje, França voltou a desaparecer do roteiro das curiosidades musicais. Neste momento Bangalter e Homem-Christo estão na esfera da glamorosa cultura pop – gerindo cada centímetro da carreira; os robots atingiram o zénite por mérito próprio – um patamar em que lhes atribuíram a cidadania do mundo: há muito que deixaram de ser franceses, ou deixaram de encabeçar um hype estilístico.

Mas houve um toque francês na música de dança. Um perfume indelével. Uma vibração positiva. Hedonismo. Um espírito. Intenso o suficiente para a realizadora francesa Mia Hansen-Løve o ter abordado no seu recente filme Eden, que o irmão – DJ na altura da euforia – ajudou a escrever. E porque o castelo do french touch ergueu-se na alternância entre os tijolos do pragmatismo e da mesmerização, haverá um rescaldo digno que permita uma resenha em que a acção dos principais intervenientes (ou pelo menos os mais mediáticos) proporcione uma intervenção catártica?

Daft Punk e Etienne De Crecy ainda andam por ai.

PARTE 1: GÉNESE

De França vieram algumas das produções mais cool entre 1996 e 2001. Foi um dos hypes da época. Divertido. Dos muitos que haviam naqueles anos (e eram muitos – do pós-Acid, do Trance, do Jungle, do Drum n’ Bass ou o Techno minimal em conluio com o Dub; para não falar da pujança do Trip-hop como saudável degeneração do Acid-jazz). Inventavam-se coisas… estimulantes.

A imprensa fascinou-se. E tinha motivos para tal. Numa fornada, Motorbass (Etienne De Crecy e Philippe Zdar), Daft Punk, Alex Gopher, Alan Braxe, Fred Falke, Benjamin Diamond ou Dimitri From Paris – St. Germain, Laurent Garnier, e os azeiteiros David Guetta e Bob Sinclair, nunca tiveram nada a ver com a específica equação – surgiram como cavaleiros do amanhã. Produtores espontâneos. De entendimentos tão elementares que a sua maravilha com a cultura Rave se mostrava limitada: intrinsecamente, não sabiam muito bem do que se tratava, e a aura de ingenuidade foi, talvez, a mais-valia do estalo inicial: a memória sonora da colecção de discos dos pais cruzava-se com o ímpeto do QUERER fazer música, que começara na garagem a rasgar riffs Punk com os amigos do liceu, e acabou a carregar nos botões do Roland 909 ou do 808 volvidas várias noitadas de martelada nos clubes de Paris.

E nem eles alguma vez o desmentiram: a pilhagem. Foi o princípio de construção. E foi o que os enobreceu. Filtrar. Filtrar. Filtrar. Para disfarçar. Pansoul dos Motorbass foi o mais descarado exemplo da pilhagem nublada, psicotrópica, pastiche obsessiva (Hip-House, Deep-House, Soul, Disco, Boogie; tudo ao monte), que depois Superdiscount veio secundar, mas com eclética ponderação retro.



Em 1997, Superdiscount começou por ser uma compilação. Mera compilação. Contudo em poucas semanas percebeu-se que não o era. Foi desmascarada a ideia. Etienne De Crecy era uma constante. Lendo e relendo aquela curta lista de créditos da Disque Solid (a editora) nos quatro EPs – com capas que figuravam um simples puzzle (uma inteligente jogada de marketing) – o mesmo sujeito (cara metade dos Motorbass) estava a por detrás de um álbum conceptual que se queria compilação. Não veio mal ao mundo, muito menos irritou quando a coisa se expôs naturalmente. E Etienne De Crecy depressa deu a cara.

Enquanto os Daft Punk garimpavam com “Around the World”, e Homework picava o espírito de James Murphy como uma espécie de investida contra-punk-house-revivalismo-não-sei-do-quê dançável, paralelamente, Superdiscount era o som coquete apontado ao sofá, ideal para o chá late hours em colóquio noctívago. Para Etienne, se bem me recordo de algumas palavras na altura, a House assimilava a alma do Jazz para se expressar sem constrangimentos; ser livre, permitir ao espírito deambular pelos recônditos espaços da imaginação, permitir vários temperamentos anímicos…

Etienne De Crecy. Alex Gopher. Philippe Zdar. Os três nunca se sentiram confortáveis com a expressão french touch. Toleravam-na. Só queriam ser produtores, DJs, curtirem o que tinham para dar.



Com as intensas experiências sonoras a solo de Bangalter e Homem-Christo entre 1998 e 2000, na Roulé e Crydamour, respectivamente, os dois activistas Daft Punk secaram de vez o terreno arável quando espetaram em finais de 2000 o prelúdio de Discovery: “One More Time” – talvez o derradeiro hino a um género (ressalve-se que será criminoso alguém desvirtuar a genuinidade de “Music Sounds Better With You” face ao calculado e hediondo plano comercial de “One More Time”.

No outro lado da barricada, Tempovision de Etienne De Crecy, de si uma jogada derivativa conceptual lançada poucos meses antes (que verdadeiramente procurava novos caminhos sem se desvirtuar), depressa esfumou-se perante o marketing hardcore de Discovery (um disco em que nem tudo era diabólico, apesar de fazer questão de o ser).

PARTE 2: VOLTEMOS AO CHAVÃO, EM CONTRA TEMPOS

French touch. Morreu num estranho AVC? Volvido o fascínio inicial, a exploração maciça dos princípios pela indústria sôfrega, a repetitividade; assomando-se o desejo duma nova geração de produtores em experimentar linguagens imergentes – a ascensão da quadrada matemática do Tech-house, ou a forçada reinvenção dos anos 80 pelo Electro-clash –, o toque francês morreu por falta de reanimação dum corpo à espera de novos estímulos nostálgicos correspondentes. A Kitsuné brotou, e passou a mostrar uma outra França musical, uma mais dada ao cruzamento de um Punk anacrónico com uma electrónica epiléptica. Um hype, diga-se, que secou depressa – e que datou os Justice antes mesmo de mostrarem original valor.

Etienne De Crecy. Desapareceu. A lenda virou um eremita. E acabou esquecido. Isolou-se de tal maneira do Universo Pop (onde chegou a ser visto como um virtuoso que poderia manobrar os desejos de estrelas como Madonna) e desmarcou-se do género que ajudara a estabelecer. Etienne tornou-se – definitivamente – naquilo que quis ser desde o início: produtor e DJ em vez de uma estrela pop. Respeitável. Com a ascensão do Tech-house, Etienne arrumou o sampler – ou pelo menos deixou de o usar com frequência – e dedicou-se à restante maquinaria. A sua música regelou, e perdeu a sedutora aura Soul. E até a ideia de associar o House ao espírito Jazz foi enfiada para os confins do congelador. E basta ouvir esta merda:



Os Air e os Daft Punk prosseguiram – com resultados desequilibrados –, esmiuçando a personalidade sonora que os consagrou, apostando na ideia de carreira, internacionalizando-se. Por assim dizer, vendendo um conceito, uma imagem; no fundo tornaram-se numa marca. Do outro lado, instalou-se a ambiguidade. Alex Gopher largou a sua pertinente abordagem ao P-funk para se dedicar à Pop, ou ao Rock, ou ao Tech-House, ou a qualquer coisa. De Etienne, está quase tudo dito – quase. Dos outros? Bem, muitos voltaram às suas vidinhas; alguns ainda andam por aí a passar discos.

PARTE 3: ETIENNE DE CRECY vs. SUPERDISCOUNT

Três tombos em dezoito anos. E todos eles a reflectirem um dado instante anímico de Etienne. Do primeiro capítulo, no essencial, a história já determinou o legado – e havendo legado, torna-o essencial para perceber a música de dança do final dos anos 1990, estando no mesmo patamar de Homework no escalão de estudo obrigatório. Do segundo depoimento Superdiscount, há a referir que, além do reflexo Tech-house, ou o desejo obcecado de Etienne de reordenar a House de Chicago, ou o Acid-house raver, o savoir-faire ditou a produção, subtraindo abstratividade, ingenuidade, e um puro sentido lúdico da música; salvo excepções, Superdiscount 2 cheirava a plástico, a um produto hermético feito à medida de determinadas pistas de dança dadas à pastilha.

Se há alguma coisa de “novo” no terceiro capitulo é o regresso à exploração dos maneirismos House no tratamento da Soul, do Electro-funk, do Hip-hop; tendo sido descartados o Disco e o Boogie para evitar possíveis embaraços estilísticos. De qualquer forma, Etienne De Crecy volta a ter um definido sentido estético. Sem que o afirme impudicamente, volta à zona de conforto.

Dito isto, e objectivamente: uma vez mais a proficiência da produção compensa a falta de imaginação, ou a falta de ambição – os exactos problemas de Superdiscount 2. Oiça-se “Smile”, e como Etienne e Gopher se reúnem – tipo Domingo à tarde, sem nada mais de interessante a fazer, e enquanto bebem umas jolas – e brincam com os velhos brinquedos para recordar o tempo em que brincar era sério; ou como “Follow” ou “Love” – ironia das ironias – poderiam fazer parte do alinhamento de “Discovery” em 2001. O que solidifica este disco, em detrimento das inconsequências instrumentais, são as colaborações vocais. Uma novidade em relação aos capítulos anteriores. Pos & Dave dos De La Soul, Tom Burke dos Citizan, ou a iniciante Kilo Kish, e mais alguns nomes obscuros, complementam a aventura de Etienne. “You”, “WTF” e, em especial, “Family” – de longe o que melhor se extrai deste disco amorfo; um misterioso dueto entre “alguém” e um sósia de Barry White: atracção, sedução, amor, sexo.



PARTE 4: ECO NO ESPELHO

No fim, resta perguntar: o que é french touch, mesmo? Um toque de romantismo, hedonismo, delírio, ingenuidade. É tudo… e não é nada. Aconteceu a uma geração francesa suficientemente feliz para agarrar o que tinham à mão e manipular determinados maneirismos; ou seja: descontextualizar o Disco (na vertente de libertação da alma do corpo) e ao mesmo tempo revigorá-la pela House (como que o corpo a exigir o regresso da alma). E isto aconteceu porque o prazer da descoberta do passado os estimulou. A ingenuidade os incutiu para a reescrita. Nesta amálgama de diversão e estudo, a classe francesa de 90 marcou o seu tempo. Marcou o nosso tempo. E a história da música é feita destes andamentos, instantes antes das vaidades esterilizarem o espírito.

ADENDA



E tudo começou – mais ou menos – em 1993. Seis anos antes de Martin James, do agora extinto Melody Maker, baptizar o House francês (e quase tudo o que se fazia em terras gaulesas com timbres electrónicos retro) de french touch.

Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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