O Genesis segundo os Godspeed You! Black Emperor
· 31 Jan 2013 · 11:23 ·
A anunciação de um fim do mundo não nos aponta o fim da história – a palavra “Hope”, com que o colectivo canadiano pinta as suas telas em concerto, é a de um mundo novo.
Ao contrário do que a história recente nos tem ensinado, os Godspeed You! Black Emperor não são uma banda dos anos 90 de volta ao activo. Mesmo enraizados no surgimento de um género como o post-rock, mesmo nascidos no coração da década. Os Godspeed You Black Emperor são, acima de qualquer dúvida, a banda mais contemporânea que temos para ouvir – o que nos obriga a saber se sempre estiveram à frente do próprio tempo, ou, antes, à espera do Apocalipse para se fazerem entender.
O próprio fim da banda, prenunciado em 2004 e confirmado quatro anos depois, deu-se numa altura em que, como viriam a dizer ao site Drowned in Sound pela voz de Efrim Menuck (também dos Silver Mt. Zion), “era muito complicado para [o colectivo] comunicar directamente com a audiência sobre o que estava a acontecer.” Estava a acontecer a Guerra do Iraque. Foi uma altura grave para os pensamentos mais radicais; uma altura em que as mentes críticas de pessoas como Noam Chomsky ou Ignacio Ramonet (que sempre apontaram o dedo à actuação dos mass media) se pasmaram por ver as consequências dos males para que sempre alertaram – isto perante uma guerra justificada com uma perseguição às bruxas, mais conhecidas como “armas de destruição maciça”. “Para o que os Godspeed faziam”, explicaria Menuck, “que era [essencialmente] comunicação unilateral,” mas sempre com um conteúdo político evidente, isto acabaria por representar um fim.
Do ponto de vista pessoal, Efrim encontraria na forma de estar dos Silver Mt. Zion algo mais palpável para uma época em que as consciências parecem mais desorientadas: “As pessoas não precisavam de uma banda de rock a apontar na direcção de como o mundo se encontrava então. Se calhar, precisavam antes de algumas palavras atabalhoadas, de uma apresentação mais humana.” No documentário ‘Blood, Sweat + Vinyl: DIY in the 21st Century’, é assim que Ian Ilasky, então membro de Silver Mt. Zion e fundador-funcionário da editora Constellation (casa para nomes como Matana Roberts, GY!BE, Silver Mt. Zion, Do Make Say Think e Carla Bozulich), descrevia a postura dos autores de 13 Blues For Thirteen Moons e de Born Into Trouble As the Sparks Fly Upwards, como uma de constante procura de comunicação – o diálogo e a conversa eram, mesmo, um desenvolvimento procurado pela interacção com a audiência. Para isso liam jornais e procuravam compreender a questão social do local onde estavam a actuar.
O regresso, por outro lado, acontece durante uma conjuntura a que os Godspeed You! Black Emperor já não eram alheios; apontar direcções já não se revelava insuficiente. Entre a banda e a sua audiência havia, inequivocamente, um ponto em comum: a tomada de consciência (finalmente, para alguns) de que o mundo que conhecemos estava perto de um fim. Nas palavras da banda, na entrevista cedida ao diário britânico The Guardian, explica-se a sua faceta política: “Os ideais políticos que viemos a defender nasceram do facto de estarmos sempre sem dinheiro e de vivermos num tempo em que a narrativa dominante dizia que estava tudo bem e que ia ficar tudo bem, para sempre. Isto era, claramente, uma mentira.” E foi preciso pouco mais de uma década para que a primeira frase do primeiro álbum do colectivo de Montreal ressoasse como uma verdade incontestável, perante as provas dadas pelos próprios mentirosos, quando em 2008 a crise financeira lhes bateu à porta:
The car's on fire and there's no driver at the wheel
And the sewers are all muddied with a thousand lonely suicides
And a dark wind blows
The government is corrupt
And we're on so many drugs
With the radio on and the curtains drawn
We're trapped in the belly of this horrible machine
And the machine is bleeding to death
É o fim da história segundo os GY!BE. Um fim anunciado pelas mentes liberais, colocando o capitalismo como o ponto máximo da evolução humana – tese de que o colectivo canadiano discorda, obviamente.
O filósofo norte-americano Evan Calder Williams coloca a postura crítica dos autores de Yanqui U.X.O. dentro do conceito salvagepunk, ou punk sucateiro, uma adaptação dos subgéneros de ficção científica sobre uma perspectiva do armagedão. A descrição de um mundo pós-apocalíptico como metáfora para o que nos falta hoje. Se no conceito desenvolvido ao longo do livro Combined and Uneven Apocalypse esta visão do fim do mundo serve de crítica aos nossos vícios, a comunicação dos God’s Pee, pelo seu lado, não tem tempo, mas recorda-nos, não invariavelmente, um passado próximo do nosso presente, ou, por alternativa, um presente tenebroso. Em Sleep, lembra-nos de como se costumava dormir na praia de Coney Island, uma tradição amarguradamente esquecida; em Static fala-nos de uma alucinação mórbida.
Numa altura em que os movimentos sociais vão, a par e passo, tomando conta das ruas, em que o Occupy Wallstreet deixa de ser um movimento apenas dos norte-americanos, em que a luta dos gregos, dos portugueses, dos espanhóis, dos italianos e dos irlandeses por uma sobrevivência mais digna deixa de ser apenas deles, a ideia essencial na mensagem dos canadianos torna-se evidente – e “HOPE”, como se lê de forma bem clara no início dos seus concertos, vira-se para o fim do mundo, e não para o fim da história: como Calder Williams sublinha no seu blogue, o Sauvagepunk pressupõe algo negado pela actual ordem de poderes, um novo mundo, a vir depois deste. Esta ideia é corroborada pela própria banda: “[Há] algo que muita gente sempre percebeu mal relativamente a nós – quando nos juntámos pela primeira vez, a maior parte do que fazíamos era com alegria e por alegria. Tentámos fazer música pesada, alegremente. (...) Queríamos fazer um ruído pleno de alegria e difícil de ouvir, que reconhecesse a conjuntura actual mas a dispensasse ao mesmo tempo.” Por outras palavras, “para [os GY!BE], cada música começa melancolicamente, mas aponta para o céu no fim. Como é que conseguiríamos encontrar o céu sem reconhecer a amargura em que vivemos agora?”
Quando, no final da sua actuação no Amplifest, o baterista Aidan Girt deixou claro que havia algo em comum com a guitarra de David Bryant, com Portugal, com o Canadá e com a União Europeia (o facto de estarem nos seus derradeiros momentos), a sua afirmação não surgiu como uma simples constatação do óbvio. Foi, contudo, essa simples frase que resumiu a razão do seu regresso – nunca os Godspeed You! Black Emperor foram tão actuais, estiveram tão certos e foram tão necessários.
Não que, como Jessica Hopper afirmou, em entrevista ao Daily Swarm, estivesse em causa o colectivo. As dúvidas sobre a pertinência do seu regresso foram dissipadas com um novo álbum, ‘Allelujah! Don’t Bend! Ascend!, em que os canadianos se firmam como uma banda no activo, como um colectivo e, aqui, sim, Hopper acertou, com algo mais em mente do que receber no final do concerto: “Muitas bandas não têm interesse, nem capacidade, para abanar as merdas.” Os GY!BE, por seu lado, fazem uso “da influência e do poder que têm” para contribuir para “um bem comum,” explica a jornalista. Ou para desenhar um novo movimento pelo bem comum, pelo menos. Portanto, nas palavras do colectivo: “Somos uma banda. Não ‘apenas uma banda’, mas sim uma banda. Nós contra o mundo (...), como tantos outros parvos antes de nós.”
A crise tirou-nos muito, mas devolveu-nos os God’s Pee, que se insurgem como uma face sem rosto da contracultura, assumindo a posição de quem prefere tocar algo “para os plebeus fora dos muros do castelo”, em vez de fazer algo “para agradar o rei.” Admitamos, como a banda faz, que vivemos tempos importantes. Eles assumem-se “excitados e aterrados” e, assim, fazem o seu “ruído alegre.” Mas, como explicaram ao diário britânico, têm de viver com o handicap de fazerem música instrumental, “o que significa que “[têm] de trabalhar arduamente para criar um contexto que foda o esquema ao que é documentado e que aponte na direcção da resistência e da liberdade.”
Na conversa publicada no site Daily Swarm, perguntam a Jessica Hopper se, como foi comentado na entrevista ao Guardian, defender os mesmos ideais políticos que há 10 anos atrás não seria triste. Acontece que esses ideais políticos são os mesmos que nos fazem lutar contra os sacrifícios de uma crise mal explicada. É triste que ainda tenhamos de os defender; é triste que os Godspeed You! Black Emperor tenham de fazer, ainda, música com inícios melancólicos e não possam ser, simplesmente, alegres. Mas a experiência de um mundo melhor, que pintam em concerto, serve para nos alimentar a alma sem nos tirar a ideia da fome por que não temos de passar.
André ForteAo contrário do que a história recente nos tem ensinado, os Godspeed You! Black Emperor não são uma banda dos anos 90 de volta ao activo. Mesmo enraizados no surgimento de um género como o post-rock, mesmo nascidos no coração da década. Os Godspeed You Black Emperor são, acima de qualquer dúvida, a banda mais contemporânea que temos para ouvir – o que nos obriga a saber se sempre estiveram à frente do próprio tempo, ou, antes, à espera do Apocalipse para se fazerem entender.
O próprio fim da banda, prenunciado em 2004 e confirmado quatro anos depois, deu-se numa altura em que, como viriam a dizer ao site Drowned in Sound pela voz de Efrim Menuck (também dos Silver Mt. Zion), “era muito complicado para [o colectivo] comunicar directamente com a audiência sobre o que estava a acontecer.” Estava a acontecer a Guerra do Iraque. Foi uma altura grave para os pensamentos mais radicais; uma altura em que as mentes críticas de pessoas como Noam Chomsky ou Ignacio Ramonet (que sempre apontaram o dedo à actuação dos mass media) se pasmaram por ver as consequências dos males para que sempre alertaram – isto perante uma guerra justificada com uma perseguição às bruxas, mais conhecidas como “armas de destruição maciça”. “Para o que os Godspeed faziam”, explicaria Menuck, “que era [essencialmente] comunicação unilateral,” mas sempre com um conteúdo político evidente, isto acabaria por representar um fim.
Do ponto de vista pessoal, Efrim encontraria na forma de estar dos Silver Mt. Zion algo mais palpável para uma época em que as consciências parecem mais desorientadas: “As pessoas não precisavam de uma banda de rock a apontar na direcção de como o mundo se encontrava então. Se calhar, precisavam antes de algumas palavras atabalhoadas, de uma apresentação mais humana.” No documentário ‘Blood, Sweat + Vinyl: DIY in the 21st Century’, é assim que Ian Ilasky, então membro de Silver Mt. Zion e fundador-funcionário da editora Constellation (casa para nomes como Matana Roberts, GY!BE, Silver Mt. Zion, Do Make Say Think e Carla Bozulich), descrevia a postura dos autores de 13 Blues For Thirteen Moons e de Born Into Trouble As the Sparks Fly Upwards, como uma de constante procura de comunicação – o diálogo e a conversa eram, mesmo, um desenvolvimento procurado pela interacção com a audiência. Para isso liam jornais e procuravam compreender a questão social do local onde estavam a actuar.
O regresso, por outro lado, acontece durante uma conjuntura a que os Godspeed You! Black Emperor já não eram alheios; apontar direcções já não se revelava insuficiente. Entre a banda e a sua audiência havia, inequivocamente, um ponto em comum: a tomada de consciência (finalmente, para alguns) de que o mundo que conhecemos estava perto de um fim. Nas palavras da banda, na entrevista cedida ao diário britânico The Guardian, explica-se a sua faceta política: “Os ideais políticos que viemos a defender nasceram do facto de estarmos sempre sem dinheiro e de vivermos num tempo em que a narrativa dominante dizia que estava tudo bem e que ia ficar tudo bem, para sempre. Isto era, claramente, uma mentira.” E foi preciso pouco mais de uma década para que a primeira frase do primeiro álbum do colectivo de Montreal ressoasse como uma verdade incontestável, perante as provas dadas pelos próprios mentirosos, quando em 2008 a crise financeira lhes bateu à porta:
The car's on fire and there's no driver at the wheel
And the sewers are all muddied with a thousand lonely suicides
And a dark wind blows
The government is corrupt
And we're on so many drugs
With the radio on and the curtains drawn
We're trapped in the belly of this horrible machine
And the machine is bleeding to death
É o fim da história segundo os GY!BE. Um fim anunciado pelas mentes liberais, colocando o capitalismo como o ponto máximo da evolução humana – tese de que o colectivo canadiano discorda, obviamente.
O filósofo norte-americano Evan Calder Williams coloca a postura crítica dos autores de Yanqui U.X.O. dentro do conceito salvagepunk, ou punk sucateiro, uma adaptação dos subgéneros de ficção científica sobre uma perspectiva do armagedão. A descrição de um mundo pós-apocalíptico como metáfora para o que nos falta hoje. Se no conceito desenvolvido ao longo do livro Combined and Uneven Apocalypse esta visão do fim do mundo serve de crítica aos nossos vícios, a comunicação dos God’s Pee, pelo seu lado, não tem tempo, mas recorda-nos, não invariavelmente, um passado próximo do nosso presente, ou, por alternativa, um presente tenebroso. Em Sleep, lembra-nos de como se costumava dormir na praia de Coney Island, uma tradição amarguradamente esquecida; em Static fala-nos de uma alucinação mórbida.
Numa altura em que os movimentos sociais vão, a par e passo, tomando conta das ruas, em que o Occupy Wallstreet deixa de ser um movimento apenas dos norte-americanos, em que a luta dos gregos, dos portugueses, dos espanhóis, dos italianos e dos irlandeses por uma sobrevivência mais digna deixa de ser apenas deles, a ideia essencial na mensagem dos canadianos torna-se evidente – e “HOPE”, como se lê de forma bem clara no início dos seus concertos, vira-se para o fim do mundo, e não para o fim da história: como Calder Williams sublinha no seu blogue, o Sauvagepunk pressupõe algo negado pela actual ordem de poderes, um novo mundo, a vir depois deste. Esta ideia é corroborada pela própria banda: “[Há] algo que muita gente sempre percebeu mal relativamente a nós – quando nos juntámos pela primeira vez, a maior parte do que fazíamos era com alegria e por alegria. Tentámos fazer música pesada, alegremente. (...) Queríamos fazer um ruído pleno de alegria e difícil de ouvir, que reconhecesse a conjuntura actual mas a dispensasse ao mesmo tempo.” Por outras palavras, “para [os GY!BE], cada música começa melancolicamente, mas aponta para o céu no fim. Como é que conseguiríamos encontrar o céu sem reconhecer a amargura em que vivemos agora?”
Quando, no final da sua actuação no Amplifest, o baterista Aidan Girt deixou claro que havia algo em comum com a guitarra de David Bryant, com Portugal, com o Canadá e com a União Europeia (o facto de estarem nos seus derradeiros momentos), a sua afirmação não surgiu como uma simples constatação do óbvio. Foi, contudo, essa simples frase que resumiu a razão do seu regresso – nunca os Godspeed You! Black Emperor foram tão actuais, estiveram tão certos e foram tão necessários.
Não que, como Jessica Hopper afirmou, em entrevista ao Daily Swarm, estivesse em causa o colectivo. As dúvidas sobre a pertinência do seu regresso foram dissipadas com um novo álbum, ‘Allelujah! Don’t Bend! Ascend!, em que os canadianos se firmam como uma banda no activo, como um colectivo e, aqui, sim, Hopper acertou, com algo mais em mente do que receber no final do concerto: “Muitas bandas não têm interesse, nem capacidade, para abanar as merdas.” Os GY!BE, por seu lado, fazem uso “da influência e do poder que têm” para contribuir para “um bem comum,” explica a jornalista. Ou para desenhar um novo movimento pelo bem comum, pelo menos. Portanto, nas palavras do colectivo: “Somos uma banda. Não ‘apenas uma banda’, mas sim uma banda. Nós contra o mundo (...), como tantos outros parvos antes de nós.”
A crise tirou-nos muito, mas devolveu-nos os God’s Pee, que se insurgem como uma face sem rosto da contracultura, assumindo a posição de quem prefere tocar algo “para os plebeus fora dos muros do castelo”, em vez de fazer algo “para agradar o rei.” Admitamos, como a banda faz, que vivemos tempos importantes. Eles assumem-se “excitados e aterrados” e, assim, fazem o seu “ruído alegre.” Mas, como explicaram ao diário britânico, têm de viver com o handicap de fazerem música instrumental, “o que significa que “[têm] de trabalhar arduamente para criar um contexto que foda o esquema ao que é documentado e que aponte na direcção da resistência e da liberdade.”
Na conversa publicada no site Daily Swarm, perguntam a Jessica Hopper se, como foi comentado na entrevista ao Guardian, defender os mesmos ideais políticos que há 10 anos atrás não seria triste. Acontece que esses ideais políticos são os mesmos que nos fazem lutar contra os sacrifícios de uma crise mal explicada. É triste que ainda tenhamos de os defender; é triste que os Godspeed You! Black Emperor tenham de fazer, ainda, música com inícios melancólicos e não possam ser, simplesmente, alegres. Mas a experiência de um mundo melhor, que pintam em concerto, serve para nos alimentar a alma sem nos tirar a ideia da fome por que não temos de passar.