Scott Walker: o medo e o que fazer com esta merda
· 25 Dez 2012 · 20:10 ·
© Iain & Jane

Penitência, penitência: este deveria ser o mês em que este escriba cantaria louvores aos seus apetites mais veludíneos (másculas vozes infernizadas, delicadas ninfas, a volta dos tristes), declararia a sua irritação crónica com o escorropichar (obrigado, corrector automático do Word) daqueles anos 80 tipo postal ilustrado, tipo parque temático, tipo Destroyer ou tipo Ariel Pink. E algures por aqui viria uma referência abstrusa a um qualquer despojo da cultura popular (Casa dos Segredos, anyone?) e uma ou duas diatribes sobre um alvo fácil (EDM, pode ser?). Nem futebol, nem kizomba, nem jantares de Natal: a vida é lixada e o Scott Walker não ajuda.

É um cliché do tamanho de um livro do professor mais cabotino que já tive (é fácil, o tipo apresenta Telejornais), mas fique por escrito, que assim dói mais: a obra de Scott Walker entre 1967 e 1969 – qual obra, as chagas! – vale por uma vida. E se o septuagenário cantante anda por estes dias a fustigar vacas e a equalizar cacetada como se Egas Moniz lhe tivesse feito uma das suas (tudo elogios, por aqui cuspiu-se sangue com Bish Bosch, e foi mais um Diazepam para a tola), o que está alojado naqueles três anos em que Scott Engel (ou Walker) prestou vassalagem a Brel, à morte (belo fascínio para se ter aos vinte e poucos; outros passaram às aulas práticas), ao definhar da paciência, à tortuosa distribuição de vícios, aleivosias e outras emboscadas por aldeias e cerebelos… é de uma beleza que apetece beijar.

Mas isso é «Angels of Ashes», dirão. Com razão, anuo. As cordas planam; a voz com um breve, instantâneo, eco; o mesmo fraseado milagroso repetido por quatro minutos e vinte e dois segundos; um gajo a pensar como é que uma lengalenga pintada de easy listening pode arrepiar a abundante penugem latina. Pensamos a sério, por um segundo: só um infeliz com muita merda na cabeça é capaz de desenhar uma coisa tão bela; só um tipo corroído pela perfídia consegue engendrar a sua antítese; só alguém que sabe de que é feito o veneno pode ignorá-lo, isolá-lo, pedir-lhe escusa. Prolongar a primeira vogal de «Love» (a palavra final) não é ironia: é um homem a tentar ser homem, fugindo de si.

Não deixaríamos a gelatinosa especulação se não virássemos o disco ao contrário. Scott 4, já que perguntam. Agulha do vinil ou clique no Spotify no sítio certo, faixa 2. «The Old Man’s Back Again». Nos originais da Fontana, entre parêntesis, acrescenta-se «Dedicated to the Neo-Stalinist Regime». Uma pausa para o hedonismo: já ouviram uma linha de baixo assim? Se «The Old Man’s Back Again» fosse um canal de notícias, esta linha de baixo seria o rodapé onde se desvendaria o caminho para a abastança sexual, nunca a enésima exposição de rendas de bilros de Júlia Miquelina (a não ser que Júlia Miquelina tenha uma neta sem bigode, em idade casadoira).

Por cima, matéria séria: o medo do demónio, encarnado num regime totalitário (ou o medo de um regime totalitário encarnado no demónio, vai dar ao mesmo): «I seen a hand, I seen a vision / It was reaching through the clouds, To risk a dream / A shadow cross the sky / And it crushed into the ground, Just like a beast». Escrevo isto e o céu encolhe-se. Tento reproduzir o verso que vem a seguir e sinto uma pontada no joelho. Encaminho-me, outra vez, para a linha de baixo: aqui estou seguro. Não vou falar de Portugal, não vou falar do Mundo. Scott Walker já o fez antes de mim, debaixo de um nevão soviético. Hoje fustiga contraplacados com espadachins. Eu quero viver mais um bocadinho. Cheio de medo. A fingir que não.
Luís Guerra

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