Ainda faz um tempo bom para desperdiçar com Cícero
· 23 Out 2012 · 10:13 ·
Tenho acordado várias vezes com pedacinhos de canções de Cícero na cabeça. Faz sentido: apesar de notavelmente coeso para um disco de estreia (antes, o carioca de 26 anos tinha apenas liderado a banda indie Alice), Canções de Apartamento é uma colecção de apontamentos, líricos e musicais, resgatados à rotina urbana e a um delicioso realismo mágico que, tanto na música como na literatura, não cessa de permear o que nos chega de terras de Vera Cruz.

«Entra pra ver
como você deixou o lugar
E o tempo que levou pra arrumar
aquela gaveta
Entra pra ver
Mas tira o sapato pra entrar
cuidado que eu mudei de lugar
algumas certezas
pra não te magoar
»

© Mariana Caldas

Disponibilizado para download grátis no site do artista, no ano passado, sem expectativas comerciais ou planos de edição física, Canções de Apartamento acabou por se tornar um êxito de tal ordem junto dos melómanos brasileiros que, nos últimos meses, Cícero Rosa Lins tem recebido sucessivos convites para tocar ao vivo, um pouco por todo o seu enorme país, e por exigência dos admiradores decidiu mesmo dar o gostinho a quem queria ter estas canções em CD, editando o disco como objecto físico.

Tal como muitos dos seus compatriotas, Cícero não mostra pudor em citar outros autores do seu país e do seu ofício, mesmo quando falamos de verdadeiros mitos – em "Vagalumes Cegos", ele suplica "Vem cuidar de mim, vamos ver um filme, ter dois filhos, ir ao parque, discutir Caetano, planear bobagens – e morrer de rir"; em "Pelo Interfone", sugere antes: "Fala pra ele do disco do Tom Jobim, do seu apelido e de mim – e chora". Longe da reverência, estas referências soam naturais, quase até coloquiais, e não roubam pingo de originalidade ou individualidade a um conjunto adorável de canções de uma doçura quebrada, onde instrumentos e voz nunca se atropelam, antes dançam juntos, melosos, em busca de uma harmonia entre o belo e o triste, o sambinha festivo e aquela melancolia abafada e húmida, como só o Rio de Janeiro parece saber produzir.



Em entrevistas, Cícero mostra uma modéstia desarmante ("Todo mundo escreve uns versinhos, arranha um violão. Eu só fui um cara que botou na internet", diz ao site Rock n Beats) e não nega qualquer influência, desde a Música Popular Brasileira mais clássica aos novos autores (Marcelo Camelo é um ponto cardeal óbvio, ainda que Cícero nos soe um nadinha mesmo cerebral), passando pelo pop-rock "gringo", com Radiohead e Strokes à cabeça (e por falar na pandilha de Nova Iorque, que o brasileiro tanto diz apreciar, é de espreitar a versão para "Barely Legal").



Bebendo tudo o que há de bom nestes "companheiros de carteira", o que Cícero faz em Canções de Apartamento, porém, é muito seu: reflexo da mudança de uma casa com piscina e quintal para um apartamento de 25 metros quadrados, o disco de "Laiá Laiá" transparece um intimismo quase claustrofóbico de quem é obrigado a conviver com os próprios pensamentos – e é assim que tiradas como «Ainda faz um tempo bom pra desperdiçar comigo, podemos enfeitar domingos» («Ensaio Sobre ela») ou «Ainda não fazem pessoas de algodão, ainda não fazem pessoas que enxuguem suas próprias lágrimas» (João e o Pé de Feijão) pareçam excertos de uma conversa de Cícero consigo mesmo. Conversa pelo prazer da conversa, música pelo gosto da melodia certeira e do arranjo miudinho (apesar de alguns refrões mais catárticos, como em "Açúcar ou Adoçante"), e um disco que pede para ser tratado com o mesmo mimo e carinho que a sua confecção denuncia. Para ser ouvido uma e outra vez, sem pressa ou afobação, porque, como o próprio diz em "Tempo de Pipa", uma de muitas canções que pedem para ser cantadas em coro, "tudo bem, o dia vai raiar para a gente se inventar de novo".
Lia Pereira

Parceiros