REP Freestyle
· 08 Jul 2012 · 01:27 ·
Jornalista, crítico e musicólogo, Rui Eduardo Paes (REP) vem desenvolvendo uma intensa actividade na escrita sobre música. Actualmente editor da revista jazz.pt (a única revista portuguesa dedicada ao género), REP colaborou com os mais importantes jornais e revistas nacionais, numa carreira com quase trinta anos. É membro da direcção da associação Granular, dedicada à promoção do experimentalismo na música e nas artes audiovisuais e performativas portuguesas. Na qualidade de ensaísta publicou diversos volumes, analisando o fenómeno musical sob um ponto de vista originais - Ruínas, A Orelha Perdida de Van Gogh, Cyber-Parker, Phonomaton e Stravinsky Morreu. Após alguns anos sem editar material novo, REP regressa às estantes com um novo livro, Bestiário Ilustríssimo. Nesta colecção de textos, acompanhados por ilustrações de Joana Pires, reflecte sobre música(s) da actualidade e as suas infinitas conexões.

© Nuno Martins

Porque o título Bestiário Ilustríssimo?

Foi esse o título de uma série de textos que publiquei no então jornal Blitz, entre o final da década de 1980 e o início da de 90. Não sei precisar agora quando exactamente, mas “scans” desses textos podem ser encontrados na Net. Escolhi-o então porque se tratava de um mostruário de “monstros da música”, com um pendor para-enciclopédico. Retomei esse título agora, mais de 20 anos depois, porque, verificando bem, o que fazia nessa altura é o que faço agora e o que fiz sempre. O livro como que dá uma unidade ao meu percurso enquanto ensaísta e jornalista de música, enquanto crítico e enquanto teórico. Tem uma diferença substancial com esse conjunto de prosas, no entanto: não só fui aprendendo mais sobre a matéria, como tive a possibilidade de a observar de outros ângulos, dado que também me fui dedicando à curadoria e à organização de concertos, através da associação Granular, à pedagogia, por meio da realização de conferências, seminários, acções didácticas e aulas (sou professor de História do Jazz), e ainda à sua promoção e divulgação ao nível editorial.

Este livro reúne textos criados para diversos fins. Qual o critério para a selecção?

A origem destes ensaios é muito diversa: foram antes artigos de revista, folhas de sala de concertos, textos de apoio de festivais, rascunhos de conferências, entrevistas, etc., cobrindo um intervalo de uma dúzia de anos, nalguns casos talvez mais – designadamente os textos que recuperei dos meus anteriores livros e que surgem agora com características diferentes. Todos esses materiais foram reciclados, ganhando no livro novas formas e, por vezes, novos títulos. Cheguei a fundir vários textos num só. Seleccionei-os porque gostava especialmente deles e porque reparei que andavam à volta da mesma meia-dúzia de temáticas. Sendo uma recolha de textos que não foram inicialmente pensados para livro, repensei-os para o “Bestiário Ilustríssimo” tendo em conta essa coincidência de parâmetros. São eles, por exemplo, a noção de deriva, de nomadismo das músicas, o cosmopolitismo contemporâneo, os paradoxos da improvisação musical, os usos da tecnologia. Assim, como que o texto nº 6 “continua” no nº 21, por assim dizer...

Terão ficado muitos outros textos de fora. Existirá um Bestiário Ilustríssimo 2?

Sim, ficaram muitos de fora. Se tudo correr bem (ou seja, se Portugal e eu próprio não nos afundarmos na presente “crise”, que é como os neoliberais gostam de chamar às políticas económicas prosseguidas), haverá um segundo volume do Bestiário Ilustríssimo, com mais textos reciclados do meu passado recente e novas escrevinhações que for fazendo. Sempre com o mesmo figurino: um ensaio correspondendo a um figurão da música, ou a um grupo que tenha atraído a minha atenção, como uma enciclopédia que nunca chega a sê-lo efectiva e formalmente. Isso está nos meus planos e a Chili com Carne, felizmente, já admite essa hipótese. Isso se o volume que já saiu for escoando (risos). Se não se vender, pode fechar-se essa porta. Tomo, pois, a liberdade de recomendar aos leitores interessados a aquisição do livro directamente no “website” da Chili com Carne.

Na maior parte dos textos fazes paralelos ou metáforas com outros universos, com artes e mesmo com ciências. A música nunca é só música?

Precisamente, a música não é uma ilha. Não podemos separá-la dos seus contextos sociais, económicos, políticos, filosóficos... E não é possível separar a música das demais artes, começando pelas que, como ela, são performativas, tendo o palco como espaço primordial de existência. Aliás, cada vez mais um projecto musical é igualmente videográfico, instalatório, teatral, etc. Por exemplo, a electrónica experimental está a ser praticada, em muitíssimos casos, por pessoas que tiveram formação em artes visuais e não em música. Por outro lado, as músicas que se tocam têm conceitos por detrás que podem não ser necessariamente musicais. Um fenómeno recente é a retoma de preocupações políticas por parte dos músicos... Para além disso, um disco vai sendo cada vez mais um “concept”, como acontecia nos anos 1970.

© Joana Pires

Tens estado ligado ao jazz, na qualidade de editor da revista jazz.pt. Acaba por ser natural um maior destaque a músicos das áreas do jazz e da improvisação...

Sempre estive ligado ao jazz. A maior parte da minha produção escrita incide sobre as músicas experimentais e improvisadas, mas desde o primeiro minuto que também escrevo sobre jazz. É-me algo de natural: cresci a ouvir esse género musical, que era o consumido pelo meu pai, o meu grande mestre. O primeiro trabalho jornalístico que fiz foi uma entrevista com Luís Villas-Boas, publicada no Expresso. Os seis anos de trabalho que tenho com a jazz.pt fizeram com que a minha dedicação ao jazz aumentasse, mas continuo a ter uma perspectivação plural da música. Nunca deixei de lado o rock alternativo, a música exploratória, a erudita contemporânea, a livre-improvisação. Só tenho pena de não poder debruçar-me mais sobre a música antiga e em especial a barroca, que é uma paixão minha. Não correspondida, sniff (risos)...

Achas que os desenhos da Joana Pires são um bom complemento aos teus textos?

Acho pois. O meu universo é o dos jornais e das revistas, em que a um texto corresponde uma ou mais imagens. Não sou, de todo, um autor académico, ainda que por vezes o meu tipo de discurso possa resvalar para aí. Aliás, é por isso que nos meus livros não há índices onomásticos, bibliografias ou sequer, salvo um ou outro caso, notas de rodapé, o vulgar numa publicação “universitária”. Tenho sido criticado por isso – o falecido Jorge Lima Barreto zangava-se imenso comigo devido a essa opção –, mas insisto com ela. Os meus textos não são propriamente para consulta, são estórias, narrativas. É preciso lê-las do início ao fim, não apenas uma frase para reproduzir numa tese de licenciatura ou de mestrado. O que, de qualquer maneira, vai acontecendo... Habituei-me a ver os meus artigos na jazz.pt acompanhados pelas fantásticas fotos do Nuno Martins, do Hervé Hette e do meu irmão Carlos. Agora tenho também os desenhos da Joana.

Em que medida este novo livro complementa os teus livros anteriores?

Não entendo o Bestiário Ilustríssimo como um complemento do que fiz antes com os outros livros. Acho que é um passo adiante, até porque hoje julgo saber mais sobre música do que nas alturas em que os escrevi. Esta minha interpretação é ajudada pela ideia de que um texto nunca é coisa acabada. É sempre susceptível de correcção, de acrescentamento, de alguma forma de mutação. Já publicados ou não, os meus textos são “works-in-progress”. É claro que o facto de terem passado nove anos desde que publiquei o Stravinsky Morreu deu uma dimensão especial ao Bestiário Ilustríssimo. Com este era importante para mim construir uma ponte que atravessasse esse buraco temporal e desse uma lógica global à actividade que venho desenvolvendo. Devo ainda dizer que as minhas funções de bloguer no Bitaites, este último ano, levou a que a minha escrita sofresse algumas alterações, e senti a necessidade de actualizar esse material com a nova abordagem do fraseio que agora tenho.

© Hervé Hette

Porquê este silêncio de edição de tantos anos?

Porque a minha anterior editora, a Hugin, faliu e desapareceu do mercado. E isso aconteceu precisamente no momento em que lhe ia entregar um novo livro, o Senso, com desenhos de Carlos “Zíngaro” em todas as páginas. Contactei cerca de 30 editoras, e destas houve umas quatro que se interessaram. Só que o projecto era caro: o livro tinha o formato de quadrado, o que implicava um corte de papel excessivamente dispendioso. Quando essas editoras fizeram as contas, recuaram. O problema é que o Senso só fazia sentido como um quadrado. Era um livro-objecto, com os fantásticos desenhos do “Zíngaro” e o “design” do Carlos Paes, meu irmão, que também é gráfico e infografista além de fotógrafo. Ficou na gaveta até hoje, para grande mágoa minha. Os anos foram passando e as minhas muitas actividades profissionais impediram-me de pensar em outros livros. Os que tinha em circulação foram desaparecendo, para só serem encontráveis nas feiras do Metro, em alfarrabistas e em leilões da Internet. Dois ou três deles apareceram “online”: alguém teve a paciência de os copiar página a página. Foi, pois, para minha agradável surpresa que o Marcos Farrajota, da Chili com Carne, me convidou para publicar na colecção que mantém com a Thisco, a THISCOvery CCChannel. No princípio, ele queria que eu fizesse uma selecção de textos dos cinco livros editados pela Hugin para os reeditar, mas nove anos sem editar um livro fizeram com que tal me parecesse pouco. Em vez de recapitular, eu queria era avançar, mesmo que com algumas recuperações. Propus-lhe o “Bestiário Ilustríssimo”, uma enciclopédia que não é uma enciclopédia, mas que de alguma maneira até é uma enciclopédia (risos).

A tua carreira de jornalista e critico de música tem cerca de 30 anos. Depois de ouvires tantas coisas (nomeadamente facções mais experimentais) ainda há musica que te surpreenda?

Há cada vez menos música que me surpreenda e não consigo afastar uma sensação de tédio quando oiço certas coisas, mesmo que sejam bem feitas. A verdade é, porém, que volta e meia ainda descubro músicas que me tiram o tapete debaixo dos pés. É o caso de Yannis Kyriakides, a melhor das poucas verdadeiras surpresas que tive nos últimos anos. Mas devo dizer que a minha atitude auditiva tem mudado: hoje sou muito mais receptivo a práticas musicais que não têm a inovação como propósito. Não é possível revolucionar a música todos os dias ou todas as semanas. De resto, quando tal acontece em cinco anos já é extraordinário. Basta que uma música mais “mainstream” tenha frescura, enfoque e competência para eu dar o dia por ganho. E para todos os efeitos, vasculhar no passado ainda nos revela grandes pérolas musicais. Descobriram há pouco umas partituras perdidas do Gil Evans, o arranjador preferido de Miles Davis. Foram interpretadas por um grande ensemble e o disco saiu agora: Centennial. É absolutamente genial e totalmente contemporâneo, se bem que com uma deliciosa patine.

Última pergunta: para quem ouve e conhece tanta música, será fácil escolher um disco favorito? Qual é o disco da tua vida? E porquê?

Escolher um apenas é-me difícil, mas posso apontar-te os quatro grandes discos da minha vida. Conheci-os quando era adolescente e têm-me acompanhado ao longo da vida. A valorização que lhes faço já não é exclusivamente musical, é também emotiva. São eles: Afrodisiaca, de John Tchicai com a orquestra Cadentia Nova Danica; Escalator Over the Hill de Carla Bley com a Jazz Composers Orchestra e alguns convidados de peso, como o Jack Bruce, dos Cream; Birds of Fire da Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin; The People’s Republic do Revolutionary Ensemble de Leroy Jenkins. Porquê? Bom, porque o primeiro tem referência sexual, algo que eu sempre entendi como caracterizador do jazz (diz-se que o termo “jazz” vem do calão “to jass”, que quer dizer “fornicar”). Porque o Escalator... é o protótipo da pós-modernidade, uma ópera que relaciona o jazz com o rock, a folk e o experimentalismo. Importa dizer que também adoro um outro disco com semelhantes composições de Carla Bley, A Genuine Tong Funeral, de Gary Burton, no qual também encontramos Gato Barbieri no auge das suas capacidades. Porque Birds of Fire continua a ser para mim uma “trip”. E porque o Revolutionary Ensemble toca o meu lado político. Bem sei que o conceito de “República Popular” é maoísta, mas aquela música desperta o socialista libertário que há em mim...
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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