Nass El Ghiwane
Uma outra Primavera Ãrabe
· 30 Abr 2012 · 23:55 ·


Eram os Novos Dervixes, o povo do Gwihane. Nome: Nass El Ghiwane. Dervixes de um outro ascetismo, de um outro desejo de transcendência. Deles se dizia também serem Os Boémios, e isso significava outra relação, a do impacto que tiveram quando apareceram na televisão marroquina em meados dos anos 1960, oferecendo aos da sua geração a imagem de estrelas rock que a sua geração não tinha. Neles, sentia-se o ambiente fervoroso e transformador emanado do Maio de 68, cujos efeitos sentiram na origem, em França, quando por lá tocaram em 1969. Nesse momento confirmaram, uma vez mais e por fim, que, depois de se reunirem em 1963 como bando de músicos que dava sons a peças de teatro, podiam ser eles mesmos o teatro completo. Teatro vivo, actuante.

Os Nass El Ghiwane eram marroquinos que procuravam um outro tempo de abertura ao protesto, de crença na poesia e no poder social da música. Utilizavam a mais poderosa das armas: a tradição, naquilo que tem de revelador e de justo, transportada e transformada pela força de viver o presente. Os Nass El Ghiwane, uma das bandas mais respeitadas do Magrebe, adaptavam velhos contos de Marrocos, histórias inscritas em papel ou passadas por via oral, para falar do quotidiano do seu país e para dar voz aos silenciados que o habitavam. O poder absoluto e a violência do Estado sobre quem o contestava; a corrupção endémica minando a hipótese de uma vida digna aqueles que os ouviam, quer nos bairros degradados das periferias das cidades, quer nos palcos de Casablanca, a sua cidade. Claro que não podemos mais que intuir tudo isto quando os ouvimos erguer as vozes como em poesia sufi: poderosa, exigente, tremendamente expressiva. Mas, depois da música nos cair em cima pela primeira vez, esta é uma história que nos obrigamos a procurar.



Ouvir pela primeira vez os Nass El Ghiwane, desconhecendo o seu percurso e sem quaisquer referências ao que nos espera, leva-nos a agradecer ainda haver alguma dose de mistério num mundo de portas escancaradas. Ouvem-se as melodias espiraladas do guembri e do banjo (que adaptaram de outras culturas) e linhas de baixo que ressoam no cérebro enquanto abalam a caixa torácica. Ouvem-se as percussões, o bendir da família do adufe e a darbuka familiar do djambé, ondulando em vagas de ritmo incessantes. Sente-se uma energia que ouvidos ocidentais dirão próxima do rock'n'roll, no sentido de ser música descarnada, directa, no osso. Mas só por isso. Os Nass El Ghiwane dos poetas Boujemâ, que morreu em 1974 aos 28 anos, e de Laarbi Baatma, que um cancro do pulmão matou em 1997, são porta aberta para uma outra realidade: o transe da música gwana espalhando-se pelas ruas como força libertadora. Sem ninguém que nos traduza o que ouvimos, sente-se um poder que não precisa de tradução: embrenha-se em nós, minuto após minuto, ora embalando-nos no seu rodopio, ora acelerando até ser impossível escapar à força da hipnose: os graves ribombam altíssimos, as percussões não dão descanso, as vozes embriagadas embriagam os instrumentos que as rodeiam.

“Lebtana†foi o disco que me levou até eles. Rodou vezes sem conta enquanto conduzia por estradas marroquinas. Rodou até se gastar. Um segundo, exactamente igual, continuou a rodar depois daquele. O que era aquela música? “Os boémiosâ€, explicavam num bazar. “O grande grupo dos poetas, o grupo de Laarbi Baatmaâ€, explicavam noutro. Não havia história, havia aquele som magnífico e imponente que entontecia. E houve depois, já distante de Marrocos e anos depois de “Lebtana†rodar no carro e de “Hommage à Boudjemma†aterrar em casa para lhe fazer companhia, o excerto de um documentário alojado no YouTube que tudo faria para ver completo.



Os Nass El Ghiwane e a sua música como arma de sublevação. “Trovadores dos tempos modernosâ€, classifica o narrador. Boémios muito sérios. Um palco minúsculo e a banda que toca. O homem que enfrenta a polícia dançando. A banda que passeia entre o povo, a banda que continua a tocar, entre abraços dos que saltam para junto dela, dos que se juntam ao que dizem as palavras que não percebemos, mas que, repito, intuímos.

Neste preciso momento da História, falamos todos a mesma língua. A dos Nass El Ghiwane, heróis da música marroquina, incitadores de uma Primavera Ãrabe não filmada por câmaras ocidentais, é incrivelmente eloquente. Aproveitemo-la. Escutemo-la. Fora do tempo. No tempo certíssimo.

Actuação televisiva 1972:

Mário Lopes

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