Os Uriah Heep (ou os perigos de um homem regressar a sítios onde foi feliz)
· 23 Abr 2012 · 23:50 ·


Não pretendendo soar aos velhos insuportáveis do “no meu tempo é que eraâ€, ou aos bizarríssimos jovens do “noutro tempo que não o meu é que eraâ€, afirma-se aqui que uma das razões da superioridade da música gravada em formato físico sobre os gigabytes de álbuns, singles e mixtapes tão comodamente acumulados no computador é a possibilidade de, de dedo espetado nas filas das estantes, de A a Z, descobrir, redescobrir, encontrar, reencontrar, e, no processo, exasperar. Exasperar sempre. A sequência acaba normalmente aí.

Um homem quer entregar-se a esse templo profano-religioso-geek que é a audição empenhada de um disco e, caso não saiba exactamente o que procurar, não escapa à angústia da (ilusória) abundância de matéria acumulada. É um fenómeno comum. Os cds e os vinis vão aumentando em número e a escolha, paradoxalmente, complica-se à medida que cresce a dimensão da coisa. Investigando de A a Z, desenha-se o cenário diagnosticado em psiquiatria como “esse gajo não sabe o que querâ€.

Tira o John Lee Hooker da prateleira (“não é isto!â€), põe o John Lee Hooker na prateleira. Tira os Fieballs Of Freedom (“eh lá, a Estrus! Há quanto não ouvia estes gajos!â€), põe no sítio os Fireballs of Freedom. Saca o Caetano, põe o Caetano. Exclama “olha os [inserir nome de banda que causou muito burburinho em 2007 mas de que ninguém se lembra passados cinco anos], acho que nunca os ouvi a sério e agora é a hora!â€; mas não é porque fomos agraciados pela natureza com visão panorâmica e o mais provável é reparar nos Buffalo Springfield, que são como a cerveja e nunca enganam, e pegar no “Again†porque o “Bluebird†e o “Expecting to fly†ainda têm maravilhas escondidas por revelar centenas de audições depois. É isto sucessivamente, sempre que um homem que gosta da sua música se decide, dia após dia, a enfrentar as prateleiras de discos tão cuidadosamente ordenados. Uma angústia bonita que nos permite tirar as medidas à colecção e perceber cada vez mais claramente que o disco que queremos mesmo ouvir é o disco ausente – qualquer disco ausente, que é tantos e faz tanta falta.

O efeito de rodar o rato, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, não produz claramente o mesmo efeito. Nesse caso, passam-se horas a ouvir trinta segundos de canções diversas. Demasiado tenso e sôfrego. Um loop contínuo de som, com músicas diferentes mas indiferenciadas. No caso do homem perante a prateleira, toda a angústia se manifesta fisicamente. O roer de unhas e o olhar perdido, vendo passar mentalmente uma sucessão desordenada de sinais: capas de discos, imagens de concertos, recordações de pessoas com quem ouviu aquela canção pela primeira vez. Sinais, precisamente, que raramente irradiam essa luz tão simples que é a porra do álbum que ele quer mesmo ouvir. Mesmo. Agora.

Para o homem que, por inabilidade e falta de pachorra (nunca por moralidade), raramente saca música da internet; para este homem que, por mera contingência etária, tem parte da colecção reunida anteriormente à profusão de MP3, a viagem pelas prateleiras pode redundar num perigo maior.

Anda por ali de olhar saltitante até reparar naquilo lá em baixo. O “Uâ€, lugar a que apenas desce quando sabe exactamente o que vai encontrar (United States of America, sim; U2, não; e nunca nos lembraríamos que a tarde está boa para Ultravox). Aconteceu ao descer inadvertidamente ao “Uâ€. Lá estavam: Uriah Heep.

Análise séria: Os Uriah Heep foram um bando de hard-rockers da década de 1970, com um teclista incrível, Ken Hensley, saído do mesmo molde de Jon Lord, o dos Deep Purple. Cantavam sobre demónios e seres mitológicos, sobre feiticeiros que previam o futuro e sobre bailarinas ciganas cujo pai, por prever o futuro, amaldiçoava para a eternidade o hard-rocker de pinta duvidosa. Os Uriah Heep de Mick Box, o operário guitar-hero do hard-rock dos 70, e dos bateristas e baixistas que iam rodando (mas Lee Kerslake e Gary Thain são os nomes a reter), eram uma banda que rimava “soul†com qualquer outra palavra e que estava a caminho, ainda que atraída pela sonhos estampados de flores da geração de 60, dos flirts com demónios insufláveis que os Iron Maiden trariam mais tarde e que seriam depois aprimorados de forma barroco-realista em coisas boas, coisas cómicas e coisas a arder na Noruega. De resto, o falsete de David Byron, o vocalista que interessa na história da banda, naquele seu tom de ameaça cósmica proferida num misto de jogral e “deus do rockâ€, não engana quanto ao encaixe da banda na genealogia. Os Uriah Heep têm “Easy Livin'â€, riffalhada de teclas e guitarras unidas na mesma cavalgada, com quebra dramática na ponte e Byron a pontapear o jogral (mas a manter o falsete operático), e seriam incríveis só por isso. Mas houve também, entre 1970 e 1972, os álbuns “Very 'Eavy, Very 'Umbleâ€, “Salisburyâ€, “Look At Yourself†[a capa tinha uma moldura azul com um espelho no centro e isso era brilhante] e “Demons & Wizards†- onde está “Easy Livingâ€. Numa palavra: Classe – não tanta quanto Black Sabbath, Led Zeppelin, Hawkwind ou Deep Purple, mas classe.

No parágrafo anterior, ficou inscrita a versão séria e compenetrada registada pela memória no momento em que, olhar fixo no “U†da prateleira, o homem, sabem-se lá quantos anos depois, avistou novamente os Uriah Heep. Recordou como eram porta de entrada interessante para aceitação perante os sábios ex-hippies tornados metaleiros veteranos que o enchiam de recomendações em paragens pelas bancas da Feira da Ladra – gente boa que o encaminhara para os Love, para os Velvet Underground e para os Flaming Groovies. Pessoal com a cabeça cheia de factos e datas, de nomes de álbuns, de formações das bandas e dos buracos nas suas discografias que eram registados como se sorvendo as verdades essenciais da vida – 1500 paus por cada álbum e confirmava-se depois em casa a justeza da revelação.

Foi animado por este espírito, decididamente perigoso – a nostalgia impede que a música soe com clareza e justiça -, que os cds dos Uriah Heep ganharam lugar na velha aparelhagem. Erro crasso. Canção após canção, falsete após falsete, Ken Hensley incrível atrás de Ken Hensley incrível, feiticeiro depois de demónio, o prazer do reconhecimento e a capacidade de acompanhar todos os versos e qualquer um dos instrumentos (privilégio que entregamos, por mero acaso, aos primeiros discos que surgem no caminho do homem que se transforma conscientemente de mero homem em homem maluquinho da música, devotado aos seus discos e à sua história), foram acompanhados da sensação desagradável de tudo aquilo soar agora insignificante para a vida com mais duas décadas em cima e sem ex-hippies agora metaleiros veteranos como tutores. É um impacto difícil de gerir. Uma pequena morte. Ceder à nostalgia e negá-la veementemente, concentrados nas memórias do tempo em que a música se colou a nós e não na música ela mesma, é assumir a desistência – assistimos ao fenómeno, em formato viral e incontrolável, em grande parte do recente século XXI, quando o revivalismo da década de 1980, no seu todo e sem filtro, ultrapassou os dez anos de vida.

Na música, ceder à nostalgia é o mais perigoso antídoto para o criar, para o arriscar, para a necessária passada em frente. Não a devemos negar. Devemos tratá-la com o afecto que merece, enquanto prova dessa admirável capacidade de a música, canção a canção, nos permitir construir um mapa de vida.

Quando o homem voltou a arrumar os Uriah Heep na prateleira, o “Easy Livin'†mantinha-se uma canção incrível, o “Shadows of grief†rocka em abundância, o “Come away Melinda†tem uma elegância folk interessante e o “Demons And Wizards†é decididamente um álbum porreiro na escola hard-rock dos 70. Mas os Uriah Heep, em 2012, nada têm a dizer ao mundo – como terão eternamente, por exemplo, os Black Sabbath. Só dizem algo à pessoa frente às prateleiras perdida em memórias – e aos países do leste europeu que a banda visita ainda em digressões.

Para viver bem consigo próprio, o homem, naturalmente, nunca se separará dos seus cinco álbuns de Hensley e companhia. Talvez daqui a vinte anos volte a descobri-los nos confins da letra “U†da prateleira. Será bonito e será frustrante. Os Uriah Heep são para este homem, e só para este homem, uma insignificância muito importante.
Mário Lopes

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