Em Busca Das Montanhas Azuis, um dilema Faustiano
· 16 Jan 2012 · 22:34 ·
Quando o ano de 2011 estava a acabar e se deram por encerrados os balanços, quando os jornais, revistas e sites alinhavaram listas e celebraram as obras que haviam marcado os passados doze meses, dei por mim a sentir falta de um disco que, à partida, imaginava ter lugar cativo nas publicações portuguesas: Em Busca Das Montanhas Azuis, de Fausto Bordalo Dias. Não me causa espanto que entre as publicações mais jovens – sites como este – Fausto seja esquecido. Mas surpreendeu-me que no próprio PÚBLICO Em Busca Das Montanhas Azuis surgisse apenas lá pelo meio da maralha. Até que me dei conta que eu próprio não o tinha incluído. Comecei a perguntar-me porque raio teria deixado de fora o disco até que me lembrei de um detalhe: só o tinha ouvido um punhado de vezes. Pelo que passei os últimos dias com ele e calma e pacientemente fui criando aquele amor bom pelo que nos é querido e regressa.



A minha “desculpa”, passe a expressão, para não ter ouvido o disco a tempo é assaz prosaica: ouço discos a mais por trabalho e há sempre um ou outro que deixo para tempos em que ande menos emprenhado de ouvido. Podíamos dizer que à partida não há nada de grave nisto. Mas numa cultura razoavelmente auto-suficiente um objecto como Em Busca Das Montanhas Azuis estaria ainda agora, um trimestre após o seu lançamento, a ser celebrado. Gente como eu não devia esquecer-se dele; e gente como o proverbial pai de família que compra um disco por mês também não: este é o fim da trilogia iniciada com Por Este Rio Acima, a resolução da nossa saga marítima posta em música, tarefa mastodôntica que apenas um génio podia levar a cabo. Depois de tantos anos à espera, era suposto que a pátria comemorasse o talento de Fausto com uma estátua, isto após carregá-lo em ombros durante um dia inteiro.

Em Busca Das Montanhas Azuis escalou as tabelas de vendas rapidamente e em pouco tempo subiu a ouro, o que em Portugal significa mais de 10 mil unidades vendidas (ou 5 mil, tratando-se de um disco duplo). Podíamos ser levados a crer que o álbum tinha sido um sucesso, que apesar do esquecimento mediático a sociedade civil o tinha recompensado. Mas tão depressa quanto chegou ao Olimpo comercial o disco partiu sem deixar rasto. Na FNAC não consta entre os discos em destaque, apesar de entre estes haver álbuns mais antigos.

Nos media a recepção foi fria. Sim, houve as inevitáveis quatro estrelas e nove em dez valores. Mas quem trabalha na imprensa sabe reconhecer um frete à légua: os textos eram tépidos e desinspirados, como se paridos por Bartlebys que se tivessem escolha teriam preferido não se dar ao trabalho. Não houve uma capa de jornal para Em Busca Das Montanhas Azuis e as entrevistas foram, sem exclusão, salvas pelo próprio Fausto, a braços com perguntas de adormecer. (Isto não é um mea culpa, mas na altura defendi que mesmo que o álbum fosse a versão musical da bosta de vaca, teria de ser capa.) Nos textos que antecediam as perguntas perdia-se mais tempo a tecer loas a Por Este Rio Acima que ao próprio disco em questão.

Em sites como o “Sound and Vision”, de Nuno Galopim e João Lopes, Em Busca Das Montanhas Azuis nem sequer esteve entre os melhores discos portugueses do ano escolhidos pelos ouvintes, que serão certamente sub-50 anos. Estou um pouco como Mourinho depois de mais uma derrota com o Barça: “Porquê?”

Ninguém diz isto, mas a imprensa não gosta de Fausto. Não gostam, antes de mais, de ele não seduzir os jornalistas; não gostam que ele não tenha criado um séquito; não gostam que ele não lhes dê manchetes; não gostam, acima de tudo, que ele não lhes atenda o telefone, que não tenha um círculo de escolhidos de que possam fazer parte. Não gostam que ele no fundo – e muito bem – tenha um tremendo desprezo pela falta de cultura dos jornalistas (que é um facto). E na realidade não gramam mesmo nada que ele insista de forma tão pornográfica na cultura portuguesa; suportaram esse deslize proletário enquanto era obrigatório reconhecer que se tratava de um génio. Agora que já se pode não o idolatrar, querem que se foda (ele e a cultura portuguesa). Em suma: não gostam dele e bichanam-no baixinho na esperança de que quem ouve se junte ao coro dos abandonados pelo bardo. Grosso modo a imprensa é isto. E é uma merda. Se pensam que estou a exagerar deixem-me exemplificar com A Ópera do Cantor Maldito, que hoje é possivelmente o meu álbum preferido do autor. É difícil não admitir tratar-se de um disco tão bom quanto os restantes discos de cabeceira de Bordalo Dias, com tanta ou mais capacidade melódica, sentido harmónico e mestria a manipular ritmos que discos como Por Este Rio Acima, Crónicas da Terra Ardente, Para Além das Cordilheiras e, para muitos (eu incluído), O Despertar dos Alquimistas. Talvez tenha menos música africana que os atrás mencionados, mas trabalha tão bem quanto é possível a música tradicional e o uso dos coros ultrapassa, a meu ver, Por Este Rio Acima.

Contudo, a sua recepção foi ainda menos expansiva que a de Em Busca das Montanhas Azuis. Quando se falava com os críticos verificava-se que não havia um que não estivesse zangado com o suposto ataque aos críticos que o disco encerrava. Fazer discos contra o capitalismo tudo bem; atacar um crítico (se é que era mesmo disso que se tratava) era sinal de Fausto estar, como me disseram dois ou três, senil.

Mas o grande problema de Fausto é Por Este Rio Acima. Por preguiça do ser humano, não há nada que Bordalo Dias faça que não seja desmerecido quando comparado com a obra-prima de 1984. A questão é: porquê? Será Por Este Rio Acima tão melhor do que tudo o que veio depois, melhor que Para Além da Cordilheias, que Crónica da Terra Ardente, que A Ópera, melhor que este Em Busca das montanhas Azuis? E sê-lo-á de forma tão óbvia que os restantes discos mereçam ser tão desconsiderados? E se sim, que é que esse disco tem? A resposta às duas primeiras perguntas é não. Não é melhor que nenhum desses discos – é apenas a matriz destes.



A última pergunta é mais complexa. Para respondê-la fui reouvir o disco com cuidado – o que explica o atraso neste texto (mil desculpas, André). Por Este Rio Acima abre com um instrumental, o que é típico de Fausto, a que se segue “O barco vai de saída”, uma dança de roda acelerada, com ferrinhos e cavaquinho. A presença do cavaquinho dá-lhe coesão, a voz de Fausto torna delícia a melodia imaculada – que, cantada por uma velhinha de 60 anos, faria arrepiar o mais empedernido apreciador de folclore. Depois vem “Porque não me vês”, em que Fausto usa pela primeira vez o truque de fazer uma progressão com uma das cordas agudas soltas (presumo que um mi), o que lhe dá um lado indiano. Repetirá o truque no tema homónimo do início do segundo disco, e em outros discos. Depois vem uma sequência forte de novas danças de roda com pendor rancheiro: “A guerra é a guerra” (com a braguesa à frente), “De um miserável naufrágio que passámos” (ainda mais rancheiro à conta do acordeão). Mais à frente haverá “A voar por cima das águas”, igualmente movida a cavaquinho e uma canção muito eficaz. Este registo tem o seu clímax no segundo disco, com a portentosa “Navegar, navegar”, marcada pela viragem melódica depois do refrão. As danças de roda têm sempre coros e percussão forte e são fundamentais no êxito de Por Este Rio Acima: tornam o disco muito audível, muito acessível, e permitem que canções menos orelhudas como “A ilha”, uma balada simples e “Olha o fado”, não fiquem a pairar. Essa presença de uma mão cheia de canções com coros de encher o peito e pendor rítmico fortíssimo é a primeira grande marca de Por Este Rio Acima. A segunda é a grandiloquência de alguns temas, exemplificada em “Como um sonho acordado”, também do disco 1. Marcada logo desde o início pela melancolia da progressão ao piano é pontuada ainda pelo coro, que surge cedo e lhe dá logo um tom épico, ampliado pelos arranjos. No entanto, nada disto é suficiente para fazer de Por Este Rio Acima tão superior aos discos que viriam a seguir, a ponto de os apagar. A vitória de Por Este Rio Acima é o segundo disco, nomeadamente a sequência “O romance de Diogo Soares”, “Navegar, Navegar”, “O que a vida me deu” e “Lembra-me um sonho lindo”, o melhor quarteto de canções consecutivas da história da música popular universal. Há muitos discos com sequências perfeitas de três canções, nenhum com sequências de quatro tão arrebatadoras que quase façam esquecer o resto do disco. Curiosamente, “O romance de Diogo Soares” é mais uma canção que vive do ritmo, nomeadamente aquela baixo gingão que surge logo ao início – bem como “Navegar, navegar”, o que apenas vem confirmar a minha tese: as pessoas gostam mais de Por Este Rio Acima porque é um disco mais fácil, mais popular na sua raiz, que faz muito bem o que os grupos de folclore fazem, muitas vezes, com mau gosto. Se tiverem dúvidas vejam como o povo reage a “Navegar, navegar” em cada concerto de Fausto. (Eu diria que a haver alguma coisa que tornasse Por Este Rio Acima superior aos restantes discos, seria “Lembra-me um sonho lindo”.)

Em Busca das Montanhas Azuis também abre com um instrumental, mas de seguida não se atira a danças de roda nem nada que faça bater o pé e cantarolar alto. “E fomos pela água do rio” é uma balada dorida com o piano em acordes menores a descer que depois enfuna na chegada do quase-refrão. Enquanto símbolo a diferença entre as segundas canções de cada disco é sintomática: a de Por Este Rio Acima tem a força de uma epopeia; a de Em Busca das Montanhas Azuis tem a resignação – por mais bela que seja – de quem sabe que a aventura está a acabar (e acaba nisto que vivemos hoje).

Só então surge a primeira canção mexida, a óptima “Velas e navios sobre as águas”. A dança contudo não é portuguesa, porque o tema está pejado de guitarras e ritmos africanos. O mesmo se pode dizer de “E viemos nascidos do mar” (que tem um magnífico arranjo de cordas). O primeiro Fausto clássico vem então à quarta canção, com “Nos palmares das baías”: as longas frases encaixadas quase por milagre nas melodias à conta de uma hábil divisão métrica, as acentuações fortes de percussão. Contudo, é mais uma vez a música africana a matriz da canção, pelo que se baila menos.

O termo “africano” talvez não seja o mais justo, tendo em conta que Fausto defende que o disco não tem um único ritmo africano. Confesso que não percebo a afirmação, mas não tenho vontade de pôr em causa as definições do próprio autor. Pelo que o argumento segue assim: admitindo que a raiz destas canções é a música tradicional portuguesa, será ainda assim outra fonte que não aquela em que tantas vezes Fausto bebeu. São temas menos “mandados”, em que o ritmo não obriga a mexer os pés, antes a dar abanicos de anca. A voz, por exemplo, não é tão impositiva (não “ordena”, passe a expressão, como em tantas faixas que Fausto gravou). Em suma, são ritmos menos familiares para o português que cresceu a admirar Fausto.

Há mais, há mais. Depois de duas canções lentas, “Fascínio e sedução” e “À luz da mais frágil das auroras” (cujas cordas podem ser descritas como faustosas), volta uma canção ligeiramente mais agitada, “À sombra das ciladas”, autenticamente canção de big-band – mas novamente com ritmos menos óbvios. Só em “Bárbaras iguarias” se pode dizer que Fausto acelera à maneira de Por Este Rio Acima, repetindo logo a seguir em “Por altas serras de montanhas” e depois já no segundo disco, com “Pelos rios de Cuama”. Em termos de gestão de carreira Fausto devia ter colocado uma destas como segundo tema. Mas a opção de deixar uma canção mexida e orelhuda como “Nesta selva do Guinéu”, seguida de outra propícia ao abanico como “No braseiro da mourama” (puta de grande canção) a meio do segundo disco é o preço a pagar por fazer um disco conceptual.



Presumo que já tenham percebido: percentualmente Em Busca das Montanhas Azuis há menos música popular portuguesa imediatamente reconhecível. Cada uma destas canções – e não vou agora estar a descrever tudo isto – é imaculadamente bem escrita. Pode argumentar-se (e é caricato que entre os elogios burocráticos que o disco recebeu ninguém se tenha lembrado de o dizer) que a voz de Fausto não está absoluta e tremendamente sumptuosa como era costume – está apenas absolutamente sumptuosa. Há um outro roubado menos redondo e aveludado do que era habitual nele.

O problema de Em busca das montanhas azuis (do ponto de vista dos críticos) não é o de ter menos épicos, muito menos de repetir Por Este Rio Acima, como dizem algumas pessoas que não ouviram o disco com atenção. É, primeiro, o de ter menos faixas fáceis; segundo, o de ter várias canções lentas; e, em terceiro lugar, o não assentar musicalmente a sua matriz na música popular produzida pelos ranchos folclóricos. Dito de outra forma: esta música é, para a maioria das pessoas, menos familiar. As melodias são menos atiradas para a frente, não há um instrumento tão condutor (como o cavaquinho ou a viola braguesa) e o próprio ritmo pede mais esforço à anca que aos pés, o que para os portugueses é estranho.

Agora que passei umas semanas com ele, Em Busca das Montanhas Azuis tornou-se o meu disco favorito de 2011. Mas percebo que tenha sido derrotado – para a maioria das pessoas, não para mim, note-se: o seu excesso de acalmia e os ritmos menos mandados tornam-no um disco mais difícil. Seria uma pena se canções como “De um crescente dourado” ficassem esquecidas. O que implica que está na hora de matar Por Este Rio Acima, esquecer a música da moda (qualquer que ela seja) e abraçar a totalidade da obra de Fausto. Que é bem maior que um disco só.
João Bonifácio

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