DFA: Dez felizes anos
· 11 Out 2011 · 00:50 ·
Nova Iorque, Setembro de 2001. Má notícia: a cidade norte-americana viu um dos seus símbolos, as Torres Gémeas, ser destruído por dois aviões com o selo da Al Qaeda. A boa notícia é que nesse mesmo mês foi criada uma pequena editora que acabou por se tornar uma referência mundial, a DFA.

Criada por James Murphy (dispensa apresentações), Tim Goldsworthy (fundador da editora britânica Mo Wax) e Jonathan Galkin (manager nova-iorquino), a DFA é hoje um rótulo que, na maior parte dos casos, trata de apresentar ao mundo o que de melhor se faz no reino da pista de dança, mas que teima em não pôr de parte alguns projectos que recuperam as tendências pós punk dos anos 80. Embora a sua existência pareça, à partida, depender exclusivamente do destino dos LCD Soundsystem, nome maior da editora, a verdade é que ao longo desta década não tem havido senão gente boa a sair para a rua acenando uma carta de recomendação da DFA. Os nomes atropelam-se, acumulam-se e são conhecidos de todos – The Juan Maclean, The Rapture, Hot Chip, Black Dice, e a lista continua.

Foi, de resto, através de singles como “House Of Jealous Lovers”, dos Rapture, ou “By The Time I Go To Venus”, de Juan Maclean, que a DFA começou a ganhar dimensão, e tudo isto enquanto assistíamos ao início da proliferação de projectos indie rock, punk, electro, whatever, que inundou o panorama musical do início da década e dos quais apenas um grupo restrito merece a nossa atenção. Na verdade, a editora de Murphy e Goldsworthy tem primado por se rodear de sonoridades ecléticas, ao mesmo tempo vanguardistas e revivalistas, sobretudo em projectos como os LCD Soundsystem, Shit Robot ou os próprios Rapture.

Para assinalar a ocasião, o Bodyspace preparou dez discos que marcaram a última década e que são, na medida do possível, o mais aproximado do que é a identidade da DFA – que vem a Portugal, justamente, comemorar os dez anos de existência em pleno Lux, no dia 4 de Novembro. Dez felizes anos, dizemos nós. Simão Martins



 

 

The Rapture
Echoes
2003


Se os nova-iorquinos The Rapture têm uma grande dose de responsabilidade no revivalismo pós-punk que marcou o início dos anos 00, boa parte dessa culpa encontra-se distribuída pelas faixas deste álbum. Echoes mistura electricidade com electrónica e fortes ritmos de dança (tirando um ou outro momento de calmaria, como ”Infatuation”), muitas vezes duma forma extática – aliás, uma das possíveis traduções para o nome da banda refere-se aos estados de alegria, êxtase. São essas as emoções veiculadas por “House of Jealous Lovers” (que se tornou hino estival) ou ”Killing”. Os seus ritmos contagiantes e carregados de aditivos puseram o rock a rollar e fizeram-no tirar as mãos dos bolsos e mexer, mostrando que o DIY podia funcionar tão bem no início do século XXI como tinha explodido algures nos anos 70. Isto é música que funciona tão bem num concerto como na pista de dança (sempre para dançar sem vergonha) ou mesmo na aparelhagem, se quisermos ganhar pica para as duas primeiras hipóteses. Hugo Rocha Pereira


 

 

Syclops
I've got my eye on you
2008


Desde sempre afoito ao carreirismo promocional de entrevistas e fotos, Maurice Fulton andava há anos a minar o lamaçal de alguma electrónica dançável escondido atrás dos mais diversos pseudónimos (Ladyvipb, Boof ou Eddie & the Eggs), para chegar a um ponto de inevitável exposição com o maravilhoso Afro Finger and Gel na companhia da esposa Mutsumi Kanamori. O que não o impediu de permanecer numa esfera de difusa identificação, mesmo quando I've Got My Eye on You era publicitado como o seu projecto mais pessoal até à data. Em teoria, teríamos a presença de três músicos finlandeses sobre a batuta de Fulton, mas a realidade apontava para que se tratassem de meros alias do músico de Sheffield a conferirem um estatuto oficial de live band a este fascinante disco que pegava no cadáver do jazz-rock de fusão e fazia disso matéria meta-dançável em estado volátil. Habitando no lado mais oblíquo da pista de dança e revolvendo-o por entre os teclados de Bitches Brew (disco maravilhoso, não me interpretem mal) e as linhas de baixo mais funky do Jaco Pastorius minus azeite, I`ve Got My Eye on You é Fulton a reclamar toda uma influência tendencialmente perigosa que sempre esteve dissimulada no trabalho dele e a fazer disso uma segunda natureza inusitada em malhas tão infecciosas como a disco psicadélica de “Where's Jason K” ou o thumping bem roqueiro de “The Fly”. Um contínuo espectral que faz da expansividade jazzy the “The E Ticket” e da afrobeat espacial de “Mom, the Video Broke” peças com um sentimento lively que nunca resvalam para a jam inconsequente. Antes, um trabalho de desenho preciso que nunca teve sequela nem réplica desviante. Melhor assim. Muita coisa em I`ve Got My Eye on You poderia ter corrido mal. Bruno Silva


 

 

Delia Gonzalez e Gavin Russom
The Days of Mars
2005


A 10 de Outubro de 2005, a DFA lançou uma arca de Noé cósmica com representantes dos dois sexos no cockpit. Do lado masculino, o barbudo Gavin, um dia vizinho e colaborador de Brian Chippendale dos Lightning Bolt, músico de tourné de LCD Soundsystem, "The Wizard" como é conhecido, ele próprio fabricante de instrumentos analógicos, com clientes desde o patrão James Murphy a Tim Goldsworthy (UNKLE) ou Bjorn Copeland (Black Dice). Do lado feminino, a enigmática "performer" e "sound sculptor" Delia Gonzalez, homónima da mítica Delia Derbyshire, marco incontornável da história da música eletrónica mundial. Os dois juntos, qual yin yang, levam-nos a bordo de uma super-harmoniosa nave espacial de arpeggios sem fim, formas de vida artificial de ciclos precisos e circulares, paisagens eVangeli(s)cas de melhor gosto, sem grandes surpresas no caminho mas em direção contínua a reencontros com os melhores sonhos tangerina, daqueles mais inspirados de setenta e poucos. São quatro temas maravilhosamente longos, analogicamente tocados ao vivo camada a camada, longos como o pôr-do-sol nas Baleares, curtos demais para quem se deixar hipnotizar e de repente acordar aterrado em Marte. Prova na altura de que DFA poderia ser a sigla de Disco de Fantástica Audição. Nuno Leal


 

 

The Rapture
In The Grace Of Your Love
2011


Pai: "How Deep Is Your Love?". Uma linha de piano repetida, um beat 4/4, um saxofone. Groove a rodos para fazer saltar, dançar, de braço no ar, a rir ou a chorar (de alegria). Uma voz amargurada a falar-nos de amor. E está criada uma canção colossal para ouvir durante muito, muito tempo. Fosse isto 1986 e os Rapture teriam aqui uma coisa para figurar na história da pop, para ser um hino house ao lado da "Move Your Body" de Marshall Jefferson. Assim têm de se contentar em ser só a melhor malha de 2011. Que chatice. Filho: "Come Back To Me". Tem sido alvo de escárnio e maldizer (talvez por soar a uma "Heater" hipster), mas a verdade é que é o segundo melhor tema de In The Grace Of Your Love, um disco cheio de grandes coisas. Se todas as festas de todas as terriolas a adoptassem nos PAs ao lado de morenas do kuduro e quejandos os churros saberiam melhor. Espírito Santo: todo o disco, de "Sail Away" até ao fecho Commodoresiano de "It Takes Time To Be A Man". O quarto disco dos Rapture é um portento de boas canções, seja na tradição dançável da DFA, seja no olhar gospel que a banda encontrou (audível sobretudo no tema-título) para nos tirar dos nossos pecados. Nem o ateu fica indiferente. Paulo Cecílio


 

 

Hercules and Love Affair
Hercules and Love Affair
2008


O que é o melhor a seguir a uma noite de arromba? Outra. E isto passou-se em 2008. No ano anterior, os LCD Soundsystem editaram o segundo disco de estúdio, Sound Of Silver, uma autêntica obra-prima no seio de uma editora que é conhecida, pelo menos, por saber fazer dançar. A questão era precisamente saber como dar seguimento a um enorme sucesso. A DFA, que não sabe o que é o risco, lançava os Hercules and Love Affair, um projecto com a colaboração, entre outros, de Antony Hegarty, dos Antony and The Johnsons, ganhando claramente a jogada de all in. Nesse ano, que outra faixa senão “Blind” rodou noite sim, noite sim? A capacidade de incendiar a pista de dança através de batidas disco, recrutando o requinte soul de Antony, outrora um depressivo sentimentalista, peça fulcral no desenrolar do disco – primeiro em “Time Will”, depois em breves vocalizações de “You Belong”, para enfim rematar no single acima referido (malha do ano para a Pitchfork). Mas não é só de Antonices que se faz o disco homónimo dos nova-iorquinos. A receita é simples: ritmicamente frenéticos, lição que estudaram de Lindstrom, associam o suor da dança a melodias simples e cativantes, pois toda a complexidade está nas baterias, cowbell para aqui, conga para ali, claps digitais e todos os elementos que o house e o nu-disco têm na certidão de nascimento. Um disco vibrante, marcante na história da DFA e que se serve muito fresco. Assim tipo limonada à beira-mar. Simão Martins


 

 

Juan MacLean
Less Than Human
2005


Não fossem as insistentes pressões de James Murphy e Tim Goldsworthy para John Maclean regressar à música e este disco nunca teria existido. No mesmo ano em que os Daft Punk se assumiam intrigantemente human after all, Maclean fazia o contrário, manifestando o afastamento da condição humana. Tudo muito estranho, contraditório e peculiar numa música que praticamente em todos os momentos pulsava vida e irradiava uma dose satisfatória de calor – mesmo com as máquinas no centro de toda a operação. Ainda hoje esse calor não se perdeu, continuando este disco de estreia do norte-americano a ser um trabalho bem humano no seu núcleo. Less Than Human é punk-funk cósmico num exercício de filtragem de grandes sentimentos. É Juan Maclean divagador e em busca de um propósito. É a Alemanha do krautrock de 70, o pós-punk de Nova Iorque de 80 a chafurdarem na electrónica musculada dos anos 00. Este disco não será o mais emblemático da DFA pela proximidade com o estilo dos LCD Soundsystem, mas bem vistas as coisas – ou escutando com a merecida atenção – até poderá ser um dos que melhor amadureceu. E verdade seja dita: essa é a maior justiça que o tempo faz a um disco. Rafael Santos


 

 

LCD Soundsystem
LCD Soundsystem
2005


Se James Murphy soubesse, que a recuperação de músicas de décadas anteriores a que faz menção em “Losing My Edge”, iria resultar em algo tão detestável como o chillwave (o pior “movimento” para a música desde a indietronica), é provável que pensasse duas vezes antes de a ter escrito. Como “ignorance is bliss”, ganhámos todos. Começava aí um percurso incomum para um dono de editora. Nomeadamente, fazer a melhor música de todos os artistas a ela ligados. E o incomum, olhando para a estreia em longa duração para os LCD Soundsystem em 2005, continua logo na faixa de abertura. Músicas que mencionam outras bandas costumam morrer afogadas na sua própria esperteza. Mas “Daft Punk Is Playing At My House” é tão estonteante como viver numa máquina de pinball, com guitarras-tesoura-de-podar, cowbell, e um groove qual corredor da morte de que não queremos fugir. Amansado o terreno e estirpadas as dúvidas, somos atirados para lugares como a synth-pop de “Tribulations”, o punk electrónico-sarcástico de “Movement”, as Syd Barretices de “Never As Tired As When I’m Waking Up”, ou os ritmos ossudos de “Disco Infiltrator. No fundo, era só seguir em frente para não ser ultrapassado. Nuno Proença


 

 

Black Dice
Beaches and Canyons
2002


A metamorfose foi sempre, felizmente e para bem de todos nós, uma qualidade bem personificada pelos Black Dice durante toda a sua existência e até aos dias que correm. E na surpreendente estreia pela DFA, não foi garantidamente excepção. As canções (que é como quem diz) e o hardcore iam já bem longe e o que interessava aos Black Dice por estas alturas era a electrónica estilhaçada em mil pedaços e as pesquisas digitais com alto teor noise e explorativo. Pouco tempo antes de lançarem o maravilhoso single “Cone Toaster”, nove minutos de puro prazer quase dançável, os Black Dice assinaram em Beaches and Canyons cinco explorações carregadas de ruído branco do bom, toneladas de percussão e batidas certeiras, vozes que parecem saídas de uma instituição psiquiátrica, manipulação digital avançada e até, imagine-se, sons do mar. “Big Drop”, a fechar o disco, num ziguezaguear insano de crescendos e explosões, tem a força de quinhentas bombas nucleares e podia arrumar com uma parte significativa do universo se projectada até aos céus. A DFA nunca tinha visto uma coisa assim. André Gomes


 

 

Black Meteoric Star
Black Meteoric Star
2009


Os LCD Soundsystem cessaram as hostilidades mas as caixas de ritmos da DFA continuam a labutar. Entretanto o CBGB fechou as portas aos trintões nova-iorquinos que assistiram à liquefacção (entre a caverna dos Liquid Liquid de Dennis Young e a epopeia “Screamadelica” dos Primal Scream) da crueza rock na sofisticação electrónica. «I was the first one to play Daft Punk to the rock kids. I played them at CBGB», relembra Murphy, sobre as batidas sincopadas de “Losing My Edge”. Juventude em marcha com The Juan MacLean, The Rapture, Shit Robot ou Black Meteoric Star, um dos projectos de Gavin Russom que se ficou pelo LP homónimo de 2009 (coordenadas disco, rock progressivo, electro, tech-house, mistura explosiva). Murphy deixa o palco livre para uma segunda linha tomar a iniciativa: é tempo de Russom voltar à carga, mantendo viva a chama DFA que incendiou as pistas de dança na última década. Gustavo Sampaio


 

 

LCD Soundsystem
Sound of Silver
2007

A descoberta mais importante da minha adolescência foi que não precisava de ir às discotecas manhosas a que os meus amigos se sujeitavam. Até essa altura, ia sempre na conversa de que ia ser fixe. Nunca era. Demorei bastante tempo a perceber que podia ir para os copos com eles e depois podia ir para casa que no dia a seguir continuávamos a ser amigos. Talvez por isso, demorei muito tempo a perceber que dançar podia ser fixe. E talvez tenha conseguido isso com a DFA e os LCD Soundsystem. A primeira vez que me lembro de dançar sem me sentir (muito) idiota foi na segunda noite deles no Lux em 2005. Por isso, se hoje tenho um jogo de pés lendário é à pala deles. Sou bem capaz de gostar mais do Sound of Silver do que do LCD Soundsystem. As malhas são mais longas, mais expansivas, mais dança. Tirando coisas que não envelheceram bem no alinhamento ("North American Scum"), é malha atrás de malha. E continua tão dançável hoje quanto era na altura. Rodrigo Nogueira



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