Pedra. Areia.
· 26 Jul 2011 · 00:50 ·



Desde a primeira projeção dos irmãos Lumière, se estabelecia a parceria entre música e cinema. Muito antes do advento da banda sonora, era a trilha musical executada ao vivo que ajudava a marcar o ritmo, a organizar a montagem, a transmitir os climas e sensações às imagens ainda mudas. O programa de ir ao cinema incluía também apresentações musicais. Entre uma sessão e outra, pianistas ou pequenos conjuntos recebiam os frequentadores nas grandes salas de exibição. Caso de Ernesto Nazareth, autor do clássico Odeon, composto nas dependências da célebre sala de cinema carioca de mesmo nome. Cine Privê, novo álbum de Domenico Lancellotti, busca nessa antiga relação entre som e imagem, material para compor uma trilha sonora para um filme que ainda não existe. As canções funcionam como um roteiro, apresentando seus personagens, suas características, seus cenários, situações. Domenico inverte o processo. Inventa um filme para a sua música.

“De dentro da cabeça, existe um longo corredor, onde eu estou, vejo a paisagem fora, pelo meu visor, dois olhos nus, anos luz do meu amor”. Domenico posiciona sua câmera, seus “dois olhos nus”, aponta em direção a alguém que não está mais aqui. Será lembrado, cantado, procurado ao longo do disco. “Como estar dentro de uma porcelana, ou de dentro de uma cascavel, algo escamoso, úmido, oco, ambiente feito de papel”, continua a letra, descrevendo sentimentos e sensações para a seguir fazer a revelação que talvez determine seu personagem, que parece andar em círculos atrás do seu amor: “onde quer que eu vá, me encontro nesse patamar, onde eu estou”. Personagem este, que ganha uma voz apaixonada, um tanto melancólica, no belo verso final da canção: “ouço a cor vermelha do som, o sangue a circular e o coração a tocar e a tocar”. Cine Privê (Domenico Lancellotti), faixa-título que abre o disco é a introdução deste disco-filme que começa a ser rodado. Mas há muito mais neste enredo.

Seguimos com ele, construindo as cenas descritas por suas canções. Na tentativa de traduzirem em som os aspectos visuais da narrativa, os arranjos adquirem aspectos fisionômicos. Em “Fortaleza” (Domenico Lancellotti) por exemplo, bateria, sax barítono e escaleta (tocada por Money Mark, tecladista que colabora com o grupo americano Beastie Boys), simulam o ranger de uma corda. Para reproduzirem o som deste rangido, que na canção lembra o esforço em manter um barco ancorado à praia, os instrumentos lançam à deriva a própria canção. Por um instante ela se desfaz por completo. Como se estivesse dentro da tempestade, perde seu andamento e não importam mais harmonia e melodia. A imagem da corda e do barco se sobrepõe a música. O sax barítono volta a ser utilizado e somente mais esta vez, em “Zona Portuária” (Domenico Lancellotti / Kassin), simulando aqui o apito de um navio. Interessante imaginar que a escolha deste instrumento no disco, possa ter sido feita antes pelas imagens que ele sugere do que propriamente por seu som. Servindo mais à sonoplastia, do que à própria música.





De modo diverso, este diálogo entre som e imagem vai se desenvolvendo ao longo do disco. “Pedra e Areia” (Domenico Lancellotti / Pedro Sá / Alberto Continentino / Moreno Veloso / Adriana Calcanhotto), composição de caráter mais experimental feita em parceria com a banda que o acompanha no disco, segue o mesmo procedimento. A melodia da canção joga com o peso e os significados das palavras do título. Num primeiro momento, acompanhado de uma forte base rítmica, Domenico segue pronunciando sem melodia nítida as palavras pedra e areia. Desse jeito, conduz a canção a um mantra sem sentido e um tanto absurdo. A música só se transforma, volta a ganhar nitidez, quando a letra anuncia o resultado desse encontro nos versos finais cantados por Adriana Calcanhotto: “pedra vira areia nas ondas do mar”. A voz doce de Adriana e as ondas do mar, põe a canção finalmente no chão.

Já em “Receita” (Domenico Lancellotti / Jorge Mautner), o discurso zen-tropicalista em torno da quarta dimensão, bem ao modo de Mautner, sugere a Domenico o uso de efeitos de guitarra e sintetizadores, produzindo sons que mais parecem de naves estelares saídas de filmes espaciais. Se para corporificar o pensamento alegórico de Mautner, Domenico se valeu das trilhas de ficção científica, em outras faixas do disco se aproxima de outros estilos de trilhas cinematográficas. “Su di te” (Alberto Continentino / Domenico Lancellotti), não apenas por sua letra em italiano, nos remete às trilhas de Nino Rota para os filmes de Fellini. “Sua beleza” (Marlon Sette / Domenico Lancellotti) flerta com o blaxpoitation, movimento cinematográfico norte-americano surgido na década de 1970, cujos filmes protagonizados e realizados por atores e diretores negros tinham suas trilhas assinadas por artistas como Curtis Mayfield, Isaac Hsyes, James Brown, Quincy Jones e Marvin Gaye. Também em “Sua Beleza”, Domenico adota um comportamento cinematográfico em relação ao texto. Faz uso da aliteração pra descrever a paralização de seu personagem diante da beleza de sua amada: “a sua beleza é um raio, eu desmaio, eu não saio do lugar” e tal qual um diretor, indica suas ações: “pega, leva, nega, cega”.



Se tivesse que arriscar um lugar para esse “filme”, diria que ele se passa no Rio de Janeiro, em sua região central, vizinha à zona portuária. Não só por causa da canção com este título, mas também porque imagino ser o cenário adequado ao seu personagem, caminhando por suas ruas estreitas e seus casarões decadentes, em direção ao cais do porto e seus imensos galpões. Debaixo de muita chuva, a olhar a paisagem, o ambiente, as construções, os navios, a natureza, tudo fazendo-o lembrar do seu amor. Lugar e personagem, que remetem aos papéis vividos no cinema pelo ator e diretor Hugo Carvana, homenageado por Domenico, em uma faixa instrumental no disco que leva seu nome. Menos pelo malandro carioca tão bem personificado por ele, mais pela mobilidade sem propósito de seus personagens. Andarilhos sem destino em busca de não se sabe bem o quê.

Domenico chega a seu primeiro álbum solo depois de ter participado de trabalhos importantes dentro da história recente da música brasileira, notadamente, o que desenvolveu junto ao +2. Curioso identificar nele, caraterísticas que antes se misturavam ao trabalho em grupo. De um lado, o exímio baterista que imprime às canções clareza formal e solidez rítmica. Do outro, o cantor de voz pequena, pouco corpórea, perfeita às melodias fluídas, pouco nítidas que compõe. Cine Privê, seu belo disco de estréia, encontra um lugar pra sua música. No espaço entre o navio ancorado à praia e a tempestade que se forma em alto mar. Pedra. Areia.

Romulo Fróes

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