Silêncio
· 02 Mar 2003 · 08:00 ·
John Cage é, de todos os compositores americanos clássicos do Séc. XX, o que mais deixou “escola” e descendentes. Não é, como alguns erradamente afirmam, um compositor com mais ideias que conceitos musicais. Foi pioneiro na aplicação de novas formas na música clássica, e muitas das suas ideias tinham uma base filosófica bastante ampla. Muitos dos seus trabalhos estiveram relacionados com as artes gráficas (“classica art”?) e o Rock foi sempre algo a que esteve ligado. À época (década de 40 e 50) os músicos rock prestavam muita atenção às tradições clássicas e jazzísticas europeias. O rock esteve sempre de portas abertas a novos domínios, novas formas, novos estilos, e isso acabou por se verificar ao longo de todo o século. Seja como for, ninguém pode negar uma coisa: John Cage esteve associado à desconstrução clássica europeia. Ao propor novos desafios, ao fazer a música avançar numa altura em que a clássica começava verdadeiramente a ser “encurralada” por todos os géneros que surgiam ou que haviam surgido poucas décadas antes. Uma das mais célebres frases do compositor, e que estará de alguma forma relacionado com a história que vou contar em baixo, é “I do not hear noise, I hear music”. Para Cage, até o mais pequeno ruído é música. A música tem a sua própria linguagem, o seu próprio mundo, e se passarmos numa casa em construção onde estão dez trabalhadores a fazer os mais variados ruídos, então estamos a ouvir música.

Sobre John Cage muitas histórias havia para contar. Uma delas , era a sua interessante relação com os cogumelos. Cage era um especialista em cogumelos, e diz-se que certo dia ganhou seis mil dólares num jogo italiano respondendo a perguntas sobre aqueles fungos. Utilizou o dinheiro para pagar uma operação à mãe. Era também um interessado por Budismo, e uma das “lendas” daquela religião conta que Buda morreu por comer cogumelos envenenados. Yoko Ono terá levado Cage a fazer uma dieta macrobiótica. Há quem diga que terá sido por causa da sua relação com os cogumelos.

No entanto, um dos momentos mais importantes de toda a vida de John Cage, e que acabou por influenciar toda a sua carreira, foi a sua ida a Harvard por volta de 1950 (algumas fontes indicam finais da década de quarenta, outras 1951). Cage queria por momentos abstrair-se de tudo, numa sala isoladora de som onde os materiais não produziam ecos e não permitiam a entrada de ruídos. Ao querer “ouvir” o silêncio absoluto, John Cage deparou-se com dois ruídos. Espantado, pergunta ao técnico da universidade que sons foram aqueles. Depois de os descrever, a resposta foi mais do que interessante. Um deles, o mais forte, era o sistema nervoso. O outro, o menos intenso, era a circulação do sangue dentro do organismo. É aqui que começa uma relação fascinante de Cage com o silêncio: “There is no such thing as empty space or empty time. There is always something to hear or something to see. In fact, try as we might to make a silence, we cannot.”

Uma das peças mais conhecidas do compositor, 4'33" (conhecida também por “Silence”), está relacionada com aquela experiência. Numa actuação ao vivo, Cage pediu a David Tudor para ficar quatro minutos e 33 segundos sem tocar nada. A música seria os comentários das pessoas, o espanto, e todos os ruídos que se desenrolassem numa plateia desconfortável e a abandonar o local.

Cage concluiu que o silêncio não é acústico, é um estado de espírito. E a sua música tornou-se a partir dali uma exploração não intencional (como podemos ler na sua auto-biografia) de todos os ruídos. O silêncio é, também ele, uma forma de expressão. E não deixa de ser extraordinário que para Cage, mesmo numa sala isoladora de sons, não deixemos de ouvir música.
Tiago Gonçalves
tgoncalves@bodyspace.net

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