Elliott Smith revisitado
· 22 Mar 2010 · 10:20 ·


Numa altura em que a Kill Rock Stars se prepara para lançar as versões remasterizadas de Roman Candle e From a Basement on the Hill, o primeiro e o último álbum (póstumo) de Elliott Smith, respectivamente, o Bodyspace chegou à fala com Larry Crane, arquivista, profundo conhecedor e principal responsável pelo tratamento técnico do fabuloso legado musical que nos foi deixado por um dos mais marcantes escritores de canções das últimas décadas.

Partindo do tema inevitável, Larry Crane começa por referir que “o aspecto mais difícil da remasterização de Roman Candle foi decidir até onde ir. A questão não passava tanto pela anulação de todas as arestas, o que seria impossível, mas sim pelo modo como poderia suavizar os ruídos sem romper com a essência do disco. Depois de escutar a primeira versão do disco e examinar todos os sons incluídos, constatei que Roman Candle nunca tinha merecido uma masterização apropriada. Isso ajudou a que o abordasse de duas maneiras: 1) Como se fosse um novo projecto, que alguém me entregou, com o intuito de ser melhorado para posterior lançamento. 2) Manter a sensação de sempre, preservando os timings e o som do original. Tentei encontrar um equilíbrio entre ambas”.

Na condição de disco póstumo e, ao que dizem, inacabado, From a Basement on the Hill esteve sujeito a uma série de polémicas (que, de resto, perduram). Muitas delas relacionadas com o cumprimento ou não da vontade expressa em vida por Elliott Smith face a um disco, que chegou a estar aberto à possibilidade de ser duplo. Ainda assim, e se exceptuarmos os aspectos técnicos, a nova versão do disco não envolve revoluções estéticas ou de alinhamento: “Esta reedição não exigiu esse tipo de trabalho (uma reformulação). Não foram escritos quaisquer textos para acompanhar as novas edições. As únicas alterações no artwork passam pelo nome da editora e dos responsáveis pela masterização. É só isso”.

Até há pouco tempo permanecia de pé a hipótese de From a Basement on the Hill ser reeditado com o habitual segundo disco carregado de temas perdidos e demos inacabadas. Por agora, o cenário parece afastado, mas a questão faz soar um inesperado alarme, quando o arquivista refere a existência de “algumas canções que foram excluídas do álbum pelo facto de pertencerem à Interscope”. Entendemos que o tópico deve ficar por ali, porque é demasiado aterrador pensar que parte da música de Elliott Smith está (ou esteve) nas mãos de Fred Durst.

Larry Crane prossegue com algumas considerações sobre a noção que estabelece Elliott Smith como o único instrumentista dos seus primeiros discos, apontando que “isso não é exactamente verdade. O Peter Krebs (como Kid Tulsa) toca bateria no Roman Candle. O Neil Gust e a Rebecca Gates participaram nas gravações de Elliott Smith. Devemos ter em conta que o Elliott estava, nesta altura, numa banda, os Heatmiser, em que ele tocava guitarra, cantava e tinha a companhia de outras três pessoas. Os discos a solo eram uma forma de registar músicas que não se enquadravam nos Heatmiser, mas ele já tinha feito parte de outras bandas no liceu e na universidade, enquanto gravava intensivamente em casa, e muitas vezes tocando, de facto, todos os instrumentos. Em grande parte, a carreira a solo do Elliott representa uma continuidade destas primeiras experiências muito mais do que uma reacção ao período nos Heatmiser ou uma “nova” forma de apresentar canções”.

Com isto, surgem também algumas perguntas sobre a evolução de Elliott Smith como músico. A perspectiva de Larry não tarda: “O tempo dispendido foi aumentando com cada novo disco, assim como o número de pistas utilizadas em cada um. As ideias e a orquestração estiveram sempre presentes e ele adaptou-as aos meios de que dispunha na altura. A sua banda de liceu, Stranger Than Fiction, tinha arranjos mais ousados e preenchidos do que qualquer coisa nos seus primeiros três discos a solo. Em termos de pistas, a evolução foi a seguinte: 4 para Roman Candle; 8 para Elliott Smith; 4, 8 e 16 para Either/Or; 24 e 48 para XO".

Sobre a existência de alguns vídeos coincidentes com os anos dos primeiros dois álbuns, Larry Crane admite que “não deve haver mais do que algumas gravações registadas pela Mary Lou Lord numa digressão de 1995. Não me lembro de nada semelhante a Lucky Three, do Jem Cohen, que era um filme pensado e que tomou algum tempo para ser editado”.

Elliott Smith era também reconhecido por recusar a ideia do guilty pleasure como forma de expiar o gosto por bandas mais arredadas de uma aceitação unânime (um pouco como acontece hoje com Noah Lennox/Panda Bear). Elliott adorava, por exemplo, os Scorpions e determinadas particularidades dos Boston, ou “Running Scared” de Roy Orbison (muito mais do que o senhor de “Pretty Woman”). O testemunho de Larry Crane comprova essa atenção pelo particular: “Muitas vezes ele não se importava muito com a canção por inteiro, mas gostava de um pequeno aspecto, como o início de uma ponte ou algo semelhante. O seu gosto por música era vasto, embora eu tenha a certeza de que, certa vez, coloquei a sua paciência à prova com um Greatest Hits de Petula Clark”. A tensão própria das mais longas sessões de estúdio resolvia-se em paragens de Portland como “o Holman's, o Dot's Cafe, the Vern, o Club 21, the Handy Slut (Sandy Hut), o EJ's”. Não estranharíamos se alguns desses bares e cafés permaneçam num cancioneiro que tantas vezes tratava as ruas pelo nome formando assim um mapa ilustrado que pertence apenas a Elliott Smith.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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