Sleeveface
· 08 Fev 2010 · 00:01 ·
© Angela Costa

 

Começou por ser uma brincadeira, tornou-se moda e até deu num livro que é a enciclopédia do género. Não se sabe ao certo como começou mas diz-se que a sua capital tem lugar em Cardiff, porque em 2007 um tal de Carl Morris terá inventado o nome para o atrevimento de dar o corpo a caras e outras partes do corpo registadas nas capas dos LPs de outros tempos e de agora. Independentemente das suas origens e motivações, o Sleeveface, característico dos melómanos e dos amantes do vinil, é quanto mais não seja uma excelente forma de desempoeiras algumas colecções de vinil e até uma oportunidade de resgatar aquele disco que não girava há muito tempo ou aquela pérola ainda por descobrir. Com motivações diferentes, mas sempre certos do lado lúdico do Sleeveface e sem grandes preocupações, quisemos vasculhar nas nossas colecções de LPs – algumas mais empoeiradas que outras – para encontrar gente que deu literalmente a cara nos discos por alguma coisa maior. O resultado é este.




André Gomes
© Angela Costa

Tim Buckley
Goodbye and Hello

1967

Goodbye and Hello vive muito bem na sua condição de pérola esquecida do folk-rock. À semelhança do seu autor, continua, quarenta anos após o seu lançamento, verdadeiramente disponível para ser descoberto. Tim Buckley era um camaleão; de disco para disco reinventava-se, fugia à sua própria sombra. Em Goodbye and Hello, Buckley camufla-se a toda a hora sempre sob direcção de um psicadelismo que na altura era modus operandi acessível aos mais exploradores. Em duas mãos cheias de canções, Tim Buckley tira um retrato tão perfeito da época que nem com a passagem do tempo perdeu um pingo de actualidade. A culpa será da qualidade lírica dos textos, da pertinência dos arranjos, de canções como “I never asked to be your mountain”, ferida no seu orgulho e à procura de uma salvação à morte, de uma poção para a eternidade. Ainda que não pareça pela sua condição angustiada, Goodbye and Hello faz-se um conjunto de canções de peito cheio; plenas de vida e celebratórias, apetece dizer. Mas nem só de canções de pulmão aberto vive Goodbye and Hello. “Once I was” é, na sua simplicidade, na sua escassez de recursos, prova evidente do talento em forma bruta mas apurada mas apenas uma face de um disco violento no seu querer, eterno na sua condição exploradora e aventureira. Ao lado de Tim Buckley e Blue Afternoon, Goodbye and Hello forma um dos trípticos mais felizes e entusiasmantes dos anos 60.




Miguel Arsénio
© Mauro Mota

Madvillain
Madvillainy

2004

No cinema, o Fantástico ensinou-nos a desconfiar da morte do vilão, mesmo que o seu corpo esteja dividido em cem pedaços espalhados pela lagoa. É estranho perspectivar Madvillainy como uma ressurreição logo na primeira iniciativa conjunta de Madlib e MF Doom, mas estes 22 temas (sem refrão ou hook fácil) mais não são do que versículos altamente citáveis do manual dedicado ao mais autêntico hip-hop. E todo este conceito do álbum-vilão adequa-se perfeitamente a MF Doom, o MC em vigília permanente, e a Madlib, o super-produtor omnisciente, que não dorme para viver mil vidas nos seus discos. Juntos formam um vingador inédito chamado Madvillain. Isto explica também a máscara numa capa que presta subtil homenagem ao debute homónimo de Madonna (também ela um camaleão imortal). Não deixando nunca de ser um álbum de hip-hop, Madvillainy pode ser comparado a muitas outras coisas: a um videojogo ritmado (“Do not fire!” sampla a sonoplastia de Street Fighter II); a um filme formalmente livre (noutras ocasiões, Madlib filma a sua música sob o pseudónimo de Beat Konducta); a uma série de 22 vinhetas de banda-desenhada (reparem no imaginário); ou até a uma antologia não declarada de outros (a extensão que os DJs utilizam para deixar pistas obscuras aos seus pares). Num tempo (2004) em que o único propósito do género parecia ser a sua eficiência comercial na internet, rádio e televisão (com a tomada de posse sulista dos Outkast, surgida após o reconhecimento de terreno efectuado pelos Goodie Mob), Madlib e (MF) Doom comprovam, assim, a versatilidade do hip-hop como camuflagem para quase todo o tipo de narrativas. Até esse manifesto surge disfarçado num disco perfeitamente lúdico. Valeu a pena resistir a alguns empurrões para comprá-lo por sete euros e meio nos saldos da Flur.




Nuno Catarino
© Sofia Ferreira

Leadbelly
Sings Folk Songs

1968

Muita gente terá ouvido falar pela primeira vez de Huddie Ledbetter, mais conhecido por Leadbelly, por volta de 1994, quando Kurt Cobain cantou “my girl, my girl, don't lie to me, tell me where did you sleep last night”. Os Nirvana gravavam o MTV Unplugged mais famoso de sempre e, além de covers de Bowie, Meat Puppets e Vaselines, incluíam esta versão do velho cantor. Por aí muitos descobriram Leadbelly, cantor de voz forte, viajando entre os blues e a folk, exímio na guitarra de 12 cordas, senhor de muitas histórias (e muitas prisões). Neste disco, Sings Folk Songs, Leadbelly tem a companhia de um trio de luxo: Woody Guthrie, Cisco Houston e Sonny Terry – que se ocupam da harmónica e “back vocals”. O título diz tudo, Ledbetter aplica-se a um conjunto de canções folk da sua autoria, só composições originais. Alternando entre diversos registos, as canções mostram uma delicada concentração de expressividade e emoção. Este disco revela, por um lado, um Leadbelly altamente politizado, numa época em que Dylan ainda não tinha roubado o protagonismo - “We shall be free” é o exemplo mais evidente. Há também uma certa religiosidade, ou reflexão sobre a morte, expressa no medley “Good Good Good (Talking, Preaching) / We Shall Walk Thru the Valley”, com uma impressionante primeira parte “a capella”, seguida por uma segunda parte cantada sobre a caminhada “pelo vale das sombras da morte”. Lead Belly (grafia alternativa mas também válida, e preferida pelo músico) passa também necessariamente pelas questões de saias, em canções como “Keep your hands off her” (só o título é uma perigosa ameaça). São canções da terra, canções de vida e de morte, Leadbelly no seu melhor.




Nuno Leal
© Marcelo Melo

Spirit
Spirit

1968

O homónimo disco de estreia dos norte-americanos Spirit é um dos maiores legados de toda a euforia psicadélica de finais de 60 na Califórnia. Naquela altura, era talvez o lugar no mundo com mais bandas por km2 e como é óbvio, a maior parte delas fazia mais do mesmo, o que, com o tempo, tornou a sua herança sonora algo datada. Mas isso não acontece com a banda de Randy California, Cassidy, Locke, Andes e Ferguson. Porque o seu som, apesar de muito “sixties”, mistura rock com jazz, blues, folk, clássica, étnica, caldeirada rara na altura que acrescenta algo de eterno a esta música. Talvez o primeiro “Art rock” da história. Spirit é acima de tudo o espírito de estar à frente do seu tempo, quer na música, quer nos temas. Fala-se já de ecologia no maravilhoso “Fresh Garbage”; da frieza do futuro em “Mechanical World”, tema que antecipa os dias em que vivemos. Ambos os temas demonstram o talento, do aqui ainda “teenager” Randy California, em construir uma música à volta de um riff carregado de “overdubs”. Randy é um dos "masters" desta técnica, um dos grandes guitarristas esquecidos da história. Aos 15 anos foi convidado por Hendrix para se juntar à sua Experience, tendo sido o próprio Jimi quem lhe deu a alcunha “California” para o distinguir de outro músico Randy que era do Texas. Hendrix sabia que aquele puto Randy ia ser um guitarrista à frente do seu tempo. Que o diga o belíssimo “Taurus”, de onde Jimmy Page dos Led Zeppelin, anos mais tarde, fã confesso dos Spirit, tiraria os acordes iniciais de “Stairway to Heaven”. Ouvir para crer. E como todas as grandes bandas, reinava algum espírito de família em torno dos seus músicos. Ainda para mais, quando o baterista Ed Cassidy era mesmo padrasto de Randy. Bem mais velho do que todo o resto do grupo, Ed, o calvo (na altura nada rock-fashionable), experiente e sobredotado baterista de jazz que havia tocado com Taj Mahal e Ry Cooder, é o perfeito pêndulo harmónico e engrenagem pré-motorik que torna os Spirit tão especiais. "Mighty" Ed, que tanto acompanha em letargia ácida o psych-hymn “Girl In Your Eye” como arranca no comboio jam de “Free Spirit”. Tudo partes de um dos primeiros 4 grandes discos de uma banda infelizmente esquecida ou nunca decorada em tantas memórias. Estamos sempre a tempo. É esse o espírito.




Simão Martins
© Pedro Lopes

Sérgio Godinho
Pano-crú

1978

Era 1978. Volvidos três anos da ditadura e com dois álbuns editados desde então, Sérgio Godinho era já uma figura incontornável da música portuguesa. Mas talvez por se ter colado antes às artes que à política, a sua obra nunca foi absolutamente intervencionista, como acabaria por suceder no caso de Zeca Afonso. Em Pano-crú encontramos de tudo um pouco. “O galo come faisão/a galinha é quem o assa/e o pobre do pinto passa/passa uma fome de cão/e o galo come faisão” é uma das estrofes de “O galo é o dono dos ovos”, tema revisitado em O Irmão do Meio (2003) e uma das mais sublimes alegorias políticas deste músico do Porto. Já “2º andar, direito”, mostra que há uma veia lamechas em Sérgio Godinho, cantor, actor e poeta que assenta a sua música nos poemas que escreve – peço a atenção para os mestres da métrica: o método pelo qual consegue encaixar toda a letra na canção, sem desaires. Há, geralmente, dois tipos de compositores nestes moldes: os que desenvolvem uma linha musical a priori e só depois sobrepõem a letra e os que, como Sérgio Godinho, partem das palavras para os sons. E fá-lo como poucos. Basta dizer que Pano-crú inclui “O primeiro dia”, uma das melhores canções de Sérgio Godinho. Desde então, o refrão da música começou também a ser utilizado várias vezes como o refrão da nossa própria vida: o primeiro emprego, primeira mulher, primeiro filho. O primeiro dia do resto da nossa vida. Génio, genialidade, verdade, como que sugeridos por Sérgio Godinho. Pano-crú até pode nem ser o melhor disco do cantor. Mas, como a primeira música do álbum sugere, “a vida é feita de pequenos nadas”, não é assim?




Tiago Gonçalves
© Pedro Gonçalves

Leonard Cohen
Songs of Leonard Cohen

1968

“Suzanne” é a primeira faixa nesta estreia discográfica de Leonard Cohen, aquele a que tanto chamam poeta como compositor, com igual probabilidade e displicência. Aquela displicência rara, de boa, porque sendo uma coisa ou outra ele é artífice entre os melhores, e não vale muito a pena tentar acolher preferencialmente uma das qualificações. Mas “Suzanne”, ó, “Suzanne”. Os melhores artífices ensinavam os alunos, e eram apelidados de mestres. Leonard Cohen foi mestre com propriedade, sobre mulheres, isto é, a nossa relação com elas, ou a relação delas connosco – o que para ele são coisas diferentes e uma delas tangível – e tanto que aprendemos com ele. Tal como foi mestre sobre religião. “Suzanne” toca nessas duas temáticas. Mas Leonard Cohen não foi sempre poeta e compositor, foi só poeta adolescente antes de ser poeta e compositor trintão. Se não fosse assim, seria possível existir esta “Suzanne”? Seria, seria, mas cremos isso muito improvável, porque a tentar subir essa montanha, muitos morreram pelo caminho. Suzanne, não a música, mas a mulher, a rapariga que lhe serve de musa, tem o intricado e o misterioso que faz parte um pouco de toda a carreira de Cohen. Em 1968 “Suzanne” foi uma composição que ficou como primeira faxa do primeiro álbum de Leonard Cohen. Se só aqui há referência a “Suzanne” quando todas as restantes músicas estão quase ao mesmo nível? Hoje, sim. Para que quem leia este texto tenha tanta compaixão pelas restantes, que as vá ouvir imediatamente.


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