Eis que, num curto espaço de tempo, o oceano, enquanto tema e mote para considerações sonoras, foi alvo de cinco discos variados nas suas abordagens e linguagens. Aqui ficam. |
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© Margarida Pinto |
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Yoshio Machida Hypernatural #3 2008 Baskaru + info http://www.yoshiomachida.com http://www.baskaru.com |
Sem deixar de incidir nas mesmas linguagens, Yoshio Machida é figura da música improvisada japonesa que dificilmente repisa terreno. Com a trilogia que termina em Hypernatural #3, Machida prova que o seu alcance enquanto músico vai muito além da acústica pura do amorphone, vasilha de metal personalizada, que domina Naada e grande parte de Infinite Flowers (que contava com a participação dos minamo). Yoshio Machida, sempre atento às estações e aos seus diferentes ciclos, procurou, com o conceito Hypernatural, transpor para a música as possibilidades quase infinitas dos vários meios. Depois de um primeiro volume dedicado à “memória no Oriente” e de um segundo incidente na “existência transparente”, Hypernatural #3 dedica-se ao “oblívio” e a como esse se sente na natureza, seja nas ondas que esquecem a sua contagem ou na mutação sofrida por um alimento ao longo da sua cadeia. Com isso, fica o caminho aberto para exercícios caleidoscópicos de electro-acústica, inserida num formato de diário-sonoro próximo dos que conhecemos a Yuko Nexus6 ou Aki Onda (guru da manipulação analógica de fitas que, por aqui, cede préstimos a uma “Camouflage” saturada de ruído, embora não completamente vedada a infiltrações de melodia em cacos). Sem exigir mais do que dois auscultadores, Hypernatural #3 conserva a aparência de tapete de Aladino com a rota de voo estipulada pela perspectiva intrinsecamente naturalista de Yoshio Machida.
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Willits + Sakamoto Ocean Fire |
A inconformidade de Ryuichi Sakamoto é a sorte do restante mundo. Quando um compositor, com uma carreira mais que consagrada (com um Grammy e um Óscar, inclusive), procura, mesmo assim, transpor as fronteiras do seu próprio conforto, toda a vénia é merecida. Sem se deixar amolecer pelo nobre papel que mantém como embaixador da música japonesa e de diversas causas globais, Sakamoto renova o seu perfil de músico aventureiro com Ocean Fire, precioso disco concebido a meias com Christopher Willits, que muito tem feito em termos de manipulação de guitarra, superando-se também a si mesmo nesta iniciativa. Não é às cegas que Sakamoto escolhe os seus colaboradores. Depois de um bem conseguido período ao lado do minimalista Alva Noto, rendido em Insen e em várias actuações memoráveis, o ex-membro dos Yellow Magic Orchestra atreve-se por mares nunca dantes navegados com um pretexto ao que parece “ecológico” (centrado na importância de recuperar a saúde dos oceanos). Sem ser irrelevante a mensagem associada a Ocean Fire, não há como relegar para um segundo plano o seu sublime conteúdo musical. Isto porque, mesmo que os nomes envolvidos inspirem imediata confiança, Ocean Fire satisfaz os aficionados e atiça os demais. Orientando e fortalecendo o corpo dos drones, como se fossem correntes marítimas, o colosso recorre a melodias – suspensas como um céu prestes a desabar – como sopro que impede a estagnação de tão pesada carga como o drone. Incidindo o seu raio de acção em factores essencialmente físicos, Ocean Fire parece quase inesgotável no desfile de fenómenos dessa espécie: activa vibrações sísmicas quando pretende simular um mar revoltoso, deforma violentamente vagas de som puro como se sinalizasse o perigo destas paragens. O porte gigantesco de Ocean Fire impede-o de ser descrito de forma exacta. É disco-Adamastor.
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Sun Plexus 2 Souvenir de l’ horreur 2007 Ronda + info http://sunplexus2.free.fr http://www.ronda-label.com |
De todos os discos representados no lote, Souvenir de l’ horreur é o que parece mais predisposto a desagradar, sendo que os portadores de estômago forte e/ou apetite sádico devem eliminar o “des” à palavra. Actualmente empenhados numa segunda encarnação, após um período de isolamento auto-imposto, os romenos (cuidado…) Sun Plexus 2 contam com fotografias promocionais bem reveladoras daquilo que representam: bárbaros sónicos decididos a acelerar o apodrecimento do rock, envenenando-o com todo o tipo de arsénico sludge (“À force de suce” arrasta-se por 7 minutos) e electrónica tão maldita e ameaçadora como a carapuça que encobre a cabeça do carrasco. O artwork de mar turbulento, que reveste Souvenir de l’ horreur, só denuncia a sua repugnante natureza de 20.000 Léguas Insubordinadas, narradas pelo mais feio dos animais escamados que nadem neste mar, ao qual um pirata lógico descobriria também traços de uns Mão Morta ou de uns Swans. Bandeira vermelha hasteada.
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Lawrence English Kiri No Oto 2008 Touch + info http://www.lawrenceenglish.com http://www.touchmusic.org.uk |
Uma vez mais é possível reparar que Lawrence English não se contenta com discos cingidos ao cumprimento dos requisitos de um género. É por isso que cada novo álbum seu nunca é o que aparenta ser à partida. Veja-se como a electro-acústica abstracta e granular de Happiness Will Befall não denunciava imediatamente a esperança que trazia contida, ou como For Varying Degrees of Winter, sob o disfarce de disco de drones invernosos, não desesperava por se assumir como escala térmica útil à leitura das restantes alíneas no trabalho de Lawrence English. Inserido numa continuidade, que tem como fio condutor as sensibilidades do músico australiano, Kiri No Oto evita, com igual astúcia, o fardo de ser apenas mais um previsível disco de drones. A solução para tal evasão passa por uma configuração (tematicamente) restringida dos drones, essencialmente focada na capacidade que estes têm de traduzir a sensação de nebulosidade e miragem em enquadramentos acústicos, aos quais é praticamente impossível reconhecer os sons-primos. A intenção ganha nitidez quando se descobre que Kiri No Oto significa Som do Nevoeiro. Porém, tudo o resto é pronunciadamente baço e sobrecarregado de tons no seu mais distorcido estado, como o som de órgãos possuídos à deriva no mar (“Organs Lost at Sea” revela o resto). Com isto, Lawrence English confirma o lugar como um dos estetas mais capazes de evocar em paisagens tudo o que era possível colher ao campo de acção, fosse a nível de sons brutos ou de ambiência apenas constatáveis pelo radar emocional.
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Chris Abrahams / Mike Cooper Oceanic Feeling-Like 2008 Room 40 +info http://www.room40.org |
A mais assumida aproximação ao som dos mares acaba por ser exercida por Oceanic Feeling-Like, cujo título fala pela tendência do disco. Esse que ficou a cargo de dois navegadores habituados às exigentes águas das colaborações entre criativos experientes: Mike Cooper, veterano admirado pelas vias que tem desbravado com a guitarra, e o australiano Chris Abrahams, membro dos tântricos Necks, que tem aproveitado o nome próprio para explorar energicamente o piano com outras liberdades. Juntos apontam ao objectivo comum de grande parte dos discos acima referidos: transpor para música a diversidade de factores e dimensões próprias do mar. A partir daí, todas as movimentações observadas a Ocean Feeling-Like parecem ter explicação plausível: seja a variabilidade das marés e o modo como essa se sente nas diferenças formais entre faixas, a fricção do fundo de coral emulada pelo aspecto áspero da guitarra de Cooper, ou a noção de um ecossistema equilibrado definida pelo entrelaçar harmonioso do piano zonal e guitarra em “Surfside No2”. Embora o falhanço fosse assombração à partida arredada de uma parceria entre Abrahams e Cooper, Ocean Feeling-Like revela que é bem possível usufruir de óptimos picos de forma mesmo após ultrapassada a marca dos 50 anos.
migarsenio@yahoo.com