Que sons percorrem afinal as ruas de Nova Iorque no mês de Agosto?
· 01 Set 2008 · 08:00 ·

Pode parecer um lugar comum – e talvez o seja – mas Nova Iorque tem música a sair por todos os cantos. Pode ser que um grupo de gospel entre pelo metro adentro numa viagem até downtown; pode ser que um gigante apreciador de música desça uma das avenidas de Manhattan com um igualmente gigante rádio em volume considerável; pode ser que um trio de jazz faça pequenas maravilhas e provoque um sorriso a quem decide atravessar o Central Park a um sábado de manhã depois de passar pelos Strawberry Fields, o pequeno recanto que presta homenagem a John Lennon (que ali morou perto durante anos); pode ser que o Harlem respire soul music durante todos os dias do ano; pode ser que o gospel seja poderoso num serviço religioso de uma manhã de domingo numa das mais concorridas igrejas do Harlem. Pode ser que as lojas de vinil sejam cada vez menos na cidade que – diz-se – nunca dorme, mas o formato – o mais cheiroso e apetitoso de todos eles – continua a marcar presença nas ruas e nas lojas. Não mãos de quem dorme na rua, o vinil (entre outros objectos) são o bilhete para um paraíso distante que se apregoa na rua – indiferente à maioria de quem por ali passa.

© Angela Costa

Numa cidade que foi e vai fazendo história na história da música, quisemos tirar um retrato a Nova Iorque em quatro momentos distintos num sempre concorrido mês de Agosto – das filas, dos turistas, do sol e até da chuva. Não é um levantamento exaustivo do que musicalmente vai acontecendo na cidade, mas sim um testemunho selectivo dos sons que a Big Apple oferece em pleno mês de Agosto. Um salto entre bairros e géneros, cores e cheiros, bem ao estilo daquilo que imaginamos de uma cidade como Nova Iorque.

Bush nunca mais – a banda-sonora possível

Em tempos de eleições presidenciais, parte dos norte-americanos anda a despedir-se de George Bush de forma especialmente entusiasta; querem garantir que nada do que se passou volte a acontecer e o mais provável é que votem em Obama para garantir isso mesmo. Mas Byron Coley, colunista da Arthur Magazine (que em Agosto mostrava Jason Pierce na capa), com o apoio de Ecstatic Peace e de Thurston Moore, quis ir mais longe e criou uma espécie de tour No More Bush que passou por algumas cidades norte-americanas para terminar em Nova Iorque, na segunda-feira de 11 de Agosto. O local era de referência, a Knitting Factory, situada numa das zonas mais cool da cidade. A sala principal engalanou-se (mas pouco, o público não era muito) para receber uma noite de música e poesia (erótico-politica), com alguns convidados muito especiais.

Loren Connors e Tom Carter © Angela Costa

A noite, no que à música diz respeito, havia de começar com os incríveis sons de guitarra de Loren Connors, acompanhado por Tom Carter (The Mike Gunn, Charalambides, Badgerlore, Friday Group, Kyrgyz, Spiderwebs, e por aí) e Marcia Bassett (Uns, Double Leopards, Shackamaxon, Hototogisu, GHQ, entre outros), que juntos se transformam nos Zaika. Primeiro com as palavras de Byron Coley e depois sozinhos, criaram paisagens imensas a três guitarras, num equilibro perfeito entre a tensão e a beleza. Entre algumas aparições menos célebres destaca-se pela negativa o curto concerto do duo 50 Foot Woman com Axolotl (onde andará a sua cabeça?) – que com tentativas falhadas de canções afastaram grande parte do público da sala – e pela positiva o sempre cativante Jack Rose, que voltou a trazer público para a sala com maravilhosas ragas de inspiração Faheyiana (desculpem). Não foi apenas o melhor momento da noite; foi um momento de rara (habitual para Rose) inspiração em terras do Tio Sam.

Jack Rose © Angela Costa

MV&EE © Angela Costa

Fechou a noite a dupla Matt Valentine e Erika Elder (MV & EE para os amigos), responsáveis por algumas canções que deixaram no ar ventania cósmica. Apesar de ternas e serenas, levantaram-se no ar para movimentos que por vezes se mostraram donos de alguma magia. Neil Young pode vir à memória mas, e daí, a folk americana anda por ali em doses consideráveis. Quando a poeira assentou, a noite, percebeu-se, tinha sido bem proveitosa na adequada fusão entre a música e a palavra falada. Entre a politica e a música, qual dos dois terá chegado primeiro ao final da meta?

Um bar chamado Blue Note

© Angela Costa

A fila é enorme e não é precisamente pelo preço barato dos bilhetes de entrada. Em plena Greenwich Village, a rua do bar Blue Note, a 3rd St, é das mais iluminadas do bairro com enorme tradição musical, conseguindo mesmo ganhar ao Village Vanguard, não muito distante dali. Lá dentro é o glamour que se imagina por esta altura do campeonato; no palco está tudo pronto e as mojitos, margaritas e cervejas importadas começam a atravessar os corredores nas mãos de tabuleiros nas mãos de empregados prestáveis. Quando a música finalmente começa não é surpresa: estava anunciado na porta que o prato do dia era Herbie Hancock servido com tom latino. O trombonista Conrad Herwig era o chefe e os ‘empregados’ de luxo. Entre outros, o trompetista Randy Brecker e o pianista Eddie Palmieri que assinou alguns dos melhores momentos da noite.

Com doses consideráveis de percussão e de metais, foi-se percorrendo o lado latino de Herbie Hancock tentando não pôr na mesa apenas os temas mais celebrados do pianista. Já não é a primeira vez que Conrad Herwig entra no mundo latino de outros músicos (Miles Davis e John Coltrane, por exemplo) e sai de lá com energia para o contar e naquela noite, em que até se gravava o concerto para uma futura edição, e com Herbie Hancock a aposta foi de novo ganha. “Maiden Voyage†surgiu no alinhamento com destaque especial e foi uma das maiores provas do sucesso que ressalta da tentativa. Para além do glamour houve também naquela noite de 15 de Agosto, no Blue Note, boa música na celebração do que latino há em Herbie Hancock.

Central Park a céu aberto

Pode parecer mentira, mas foi em pleno Central Park, num festival de verão que incluía ao longo do mês nomes como Maria Rita, The National ou Sharon Jones & The Dap Kings, que se proporcionou uma tarde de – certas - bandas crescidas em casa. Quer isto dizer em Nova Iorque (em alguns casos especificamente Brooklyn). Quer isto dizer que falamos de bandas que se movimentam na periferia – algo que quer dizer coisas diferentes em Portugal ou nos Estados Unidos. O Central Park SummerStage, com entrada gratuita na maior parte das vezes (como esta), estendeu o palco aos Gang Gang Dance, Black Dice e Battles e foi-se enchendo com o aproximar do concerto dos últimos. O dia é sábado, 16 de Agosto.

Black Dice © Angela Costa

A cortina abriu-se com os Gang Gang Dance e com algumas navegações sempre imprevisíveis. Aquilo que vai acontecendo em palco, é visível, é trabalho do instante, do imediato, da improvisação. As jams são longas, ricas e em constante movimento - excitantes. As metamorfoses são constantes. Os Gang Gang Dance continuam a percorrer continentes na procura de elementos distintos mas foram naquela tarde de sol mais luminosos do que o costume. E dançáveis também. O ritmo – nas suas diferentes manifestações – foi presença constante e arrastou as explorações dos Gang Gang Dance para territórios entusiasmantes e deu ao concerto uma toada inesperada de rave. Lizzi Bougatsos, na voz, dominou as atenções em palco com uma presença estranha mas exótica. Com uma prestação ao vivo acima da média, e até porque serviu de apresentação a alguns novos temas, será de bom-tom estar atento ao próximo disco dos de Brooklyn.

Gang Gang Dance © Angela Costa

Nunca se sabe muito bem o que se esperar de um concerto dos Black Dice. Bjorn Copeland, Eric Copeland e Aaron Warren são um trio inesperado e quando sobem a palco fazem-no com todos os elementos ao seu dispor. A “carreira†dos Black Dice pode ser condensada a qualquer altura em 30 minutos. E assim foi. Das máquinas fizeram som, essencialmente agressivo e de arestas difíceis, mas de quando em vez deixaram escapar um certo groove que não é raro nos Black Dice. O groove pode chegar pelas mãos das criaturas que habitam em alguns dos discos do trio e pode penetrar no ruído electrónico trabalhado cuidadosamente em palco. O resultado é intenso mas nem sempre proveitoso, e os Black Dice continuam a ser uma faca de dois gumes.

Era o momento que todos esperavam. Os Battles, em tempo de hype, subiram a palco com a tarefa de provar que são mais do que a banda de “Atlasâ€. O espécie de super-grupo (há aqui gente dos Helmet, Tomahawk, Don Caballero, entre outros) que editou Mirrored. “Atlasâ€, com a sua voz computorizada, é de facto uma excelente exorcização de demónios mas já em disco os Battles não parecem ser capazes de igualar a proeza. E ao vivo chega-se à mesma conclusão. É certo que é tudo muito enérgico e até, por vezes, desafiante. Mas exceptuando meia dúzia de bons momentos, os Battles nunca foram capazes de mostrar coerência ou um estado constante de interesse. O melhor dos Battles foi sempre a percussão e o ritmo imparável dos temas, mas no final ficou a impressão que os Battles tiveram um dia de grande sorte quando “Atlas†lhes caiu nas mãos.

Battles © Angela Costa

O senhor Sonic Youth na esquina

O local é o The Stone, apregoa o avant-garde, e não gosta muito de ser conhecido. E apesar disso é um dos locais com a programação mais desafiante e interessante de Nova Iorque. O sítio que tem John Zorn como director artístico (e East Village como localização estratégica), mal se vê quando se dobra a esquina – há apenas um letreiro de dimensões reduzidas e pouco visível na porta. Lá dentro, numa espécie de galeria, está tudo escuro e apenas se vislumbram fotografias de outras actuações numa das paredes e três figuras ao fundo da sala. Uma delas é a da Thurston Moore. As outras duas são de Susan Alcorn (pedal steel) e Ryan Sawyer (bateria). O duo é com o último mas Susan Alcorn esteve sempre muito e bem activa.

Obviamente, a guitarra de Thurston Moore esteve sempre a liderar as operações – a bateria de Ryan Sawyer esteve até bastante recatada, não se sobrepondo em ocasião alguma. A guitarra nas mãos do eterno Sonic Youth é muito mais do que uma guitarra – é tudo. E nem precisa de chaves de fendas ou outros objectos (que usou) para conseguir dela retirar os sons que precisa para compor a tela – basta-lhe as mãos e a experiência dentro e fora dos Sonic Youth. Esperavam-se grandes erupções noise mas a viagem até nem foi muito por esse caminho. Explorou-se a tensão entre os vários elementos e só em evidente urgência se recorreu a grande massas sonoras para se levar a missão a bom porto. O dia era sábado (23 de Agosto) e durante mais de uma hora a guitarra de Thurston Moore dominou um quarteirão inteiro de Nova Iorque.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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