Dois Porquinhos Babe e John Cage: o silêncio nas palavras de Vítor Rua
· 16 Jun 2008 · 08:00 ·
© Teresa Ribeiro

pB1= porquinho babe 1
pB2 = porquinho babe 2
me = meta eu
Tacet

(pB1 e pB2 encontram-se em casa do primeiro jogando uma partida de xadrez)

pB1: Hum, você hoje está a jogar excelentemente meu caro.
pB2: É verdade. Sinto-me bastante concentrado. Deve ser deste agradável silêncio.

(pB1 levanta-se)

pB1: Peço desculpa por interromper, mas vou até á porta pois tocou a campainha.
pB2: Campainha? Não ouvi nenhuma campainha…

(pB1 não ouve este último comentário, pois encontra-se já abrindo a porta da entrada de sua casa)

pB1: Mas que agradável surpresa: o nosso querido Meta Eu.
mE: Resolvi fazer uma pausa no meu metaconto e vir fazer uma visita á casa de um amigo onde tenho sempre enriquecedores diálogos e estimulantes ideias, isto claro para não falar da sua exótica e opípara gastronomia.
pB1: Oh, é pura amabilidade sua… mas entre meu caro que está frio aí fora, entre e pendure aí o seu sobretudo.

(caminham os dois para a sala onde se encontra pB2)

mE: Mas isto é fantástico…como está meu estimado colega?
pB2: Bem obrigado. E o meu amigo, como vai o seu metaconto?
mE: Estou quase a terminar o último capítulo, mas resolvi fazer uma pausa para visitar o nosso anfitrião, o que é sempre bastante refrescante devo acrescentar.
pB2: Absolutamente de acordo.
pB1: Deseja beber alguma coisa? Um vinho tinto clarete talvez? Fiz uns maravilhosos pastéis de massa tenra que ainda devem estar quentinhos e que estão uma delícia.
mE: Hum, parece-me tudo excelente. Aceito o vinho e os pastéis.

(pB1 sai e dirigi-se para a cozinha)

mE: Parece-me que vim interromper o vosso jogo.
pB2: Para felicidade e alívio do nosso camarada pB1, pois estava em grandes dificuldades. Mais umas jogadas e dava-lhe o xeque-mate. mE: Oh diabo, peço-lhe imensa desculpa. Logo hoje que estava em vantagem.
pB2: Tolice. Acabamos o jogo mais tarde. É sempre um prazer estar consigo e isso é mais importante do que um mero jogo.

(pB1 regressa da cozinha com uma jarra de vinho num tabuleiro, azeitonas temperadas, broa de milho e os pastelinhos)

mE: Bravo… mas que belo aroma…
pB2: … e a forma… e a textura…
pB1: Parem mas é de falar e comam agora enquanto estão quentinhos.
pB2: Ah é verdade, já me estava a esquecer de uma coisa que me intrigou, meu caro pB1. Quando há pouco minutos você interrompeu o nosso jogo dizendo que a campainha tinha tocado, eu não ouvi nada…
pB1: Isso é porque comprei uma nova campainha esta semana - uma campainha silenciosa.
pB2: Uma campainha silenciosa?
mE: Já tinha ouvido falar. Parece que é o último grito em campainhas digitais.
pB2: Uma campainha silenciosa? Mas se é silenciosa, como é que a ouvimos?
pB1: Bom, em primeiro lugar existem diferentes silêncios.
pB2: Diferentes silêncios? Eu pensava que só existia um tipo de silêncio: a ausência de som.
pB1: É uma questão de estarmos atentos e de ouvidos abertos. Ainda há pouco você disse que se sentia hoje particularmente concentrado devido ao silêncio. Aquilo a que você chamou de silêncio, era na realidade um silêncio relativo pois podíamos ouvir o crepitar da lenha da lareira, o vento lá fora, as nossas respirações…
mE: É como na música - também existem variegados tipos de silêncio.
pB2: Na música também? Eu sabia da importância do silêncio na música, em especial na contemporânea, mas não sabia que existiam diferentes silêncios.
mE: Mas é uma realidade, meu caro. Veja o caso do silêncio do compositor John Cage. Creio que já está familiarizado com a composição 4´33´´ de Cage?
pB2: Claro. Tenho até a partitura.
mE: Pois nessa peça, como sabe, o ou os intérpretes deverão não tocar durante um período de 4´33´´. Dessa forma, a experiência auditiva dos espectadores, era um pouco semelhante á vossa durante o vosso jogo de xadrez: vocês eram intérpretes de uma música silenciosa, mas ouviam as vossas respirações, o crepitar da lareira, o vento. Assim, esta composição é sempre diferente, consoante o sitio aonde é executada (sala de concerto, ao ar livre) e das pessoas que assistem ao evento. O que ouvimos, ao escutar o não tocar dos intérpretes, é tudo o resto.
pB2: Creio que já entendi esse tipo de silêncio.
mE: Mas há outros silêncios.
pB2: Quais?
mE: O silêncio - por exemplo - de um outro magnífico compositor americano: Morton Feldman.
pB2: E como é esse silêncio?
mE: Bem, no caso de Feldman, os seus silêncios são constituídos por infindáveis reverberações, como lhes chamou John Tilbury - que como ambos sabem é um experto da música de Feldman.
pB2: Ou seja: embora não haja acção instrumental durante curtos ou longos espaços temporais, o silêncio é constituído por reverberações de acções instrumentais passadas.
mE: Exactamente. Mas há mais: os silêncios de Sciarrino e Nono.
pB1: Ah, que belos silêncios esses…
pB2: Estão a deixar-me curioso. Como são esses silêncios?
mE: São silêncios de certa maneira idênticos. Aliás crê-se que Nono terá tido um primeiro contacto com esse tipo de silêncio numa obra de Sciarrino.
pB2: Sim, mas como os definir?
mE: São silêncios criados a partir de pianíssimos instrumentais, ou seja, o silêncio de Sciarrino e Nono é constituído de sons instrumentais subliminais - por vezes quase parasitas, no sentido de que são sons que surgem por serem tocados a tão baixas dinâmicas. pB2: Creio então poder definir esse silêncio como sendo um silêncio sonoro subliminal, não lhes parece?
pB1: Talvez… mas tem que se ter muito cuidado com definições absolutistas e por vezes redutoras, pois sintetizam apenas uma pequena essência de algo muito mais complexo. Veja o exemplo da minha nova campainha: ela reflecte outro tipo de silêncio que existe também em certa música mais recente - o silêncio digital. Certos compositores contemporâneos, incluem o silêncio digital - criado artificialmente nas suas peças. Assim, ao contrário do que acontecia por exemplo nos discos de vinil, aonde o silêncio era constituído pelo ruído amplificado da agulha sulcando o vinil, agora com a tecnologia digital, conseguiu-se criar o silêncio total. Mas como o distinguimos do silêncio do compositor John Cage? Muito simplesmente porque se em Cage o silêncio é alibi para se ouvir tudo o resto, neste caso, no silêncio digital, o que se pretende é a audição desse mesmo silêncio.
mE: Bravo. Muito bem dito.
pB2: Parabéns. De facto começo agora a aperceber-me das subtilezas e idiossincrasias dos diferentes silêncios mencionados. Mas continuo sem perceber como é que se ouve uma campainha silenciosa…
pB1: Muito facilmente, caro amigo: o som da campainha silenciosa é silencioso.
mE: Ah, Ah, Ah.
pB1: Vá meu caro, deixe lá isso, anime-se e beba mais um copo de clarete.

(Os três amigos continuaram em animada cavaqueira ouvindo - em loop - a peça 4´33´´ de John Cage)

FIM

Vítor Rua (GNR/Telectu)

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