Soft Machine: A Revisão da Máquina
· 01 Set 2007 · 08:00 ·

Third (edição original: CBS 1970)
Fourth (edição original: CBS 1971)
Fifth (edição original: CBS 1972)
Six (edição original: CBS 1973)
Seven (edição original: CBS 1973)

Reedição 2007
Sony BMG (http://sonybmg.com)

Foi para dentro de meia dúzia de anos que migraram os dias de quatro pessoas. Subtraíram-se aos seus formatos pecaminosamente pequenos e, alertados para o que estava à sua frente, abraçaram outras escalas, intemporais, inumanas, passando a carregar a fatalidade de um instante que termina no preciso momento em que é capturado, irrepetível que é até mesmo para os seus próprios criadores.

Foram depois os anos que migraram para um punhado de décadas. A música dos Soft Machine entranhou-se em algumas, ausentou-se de outras; pertenceu ao domínio do pretérito perfeito, à memória dos dias colhidos, à inércia das horas hirtas com feições diluídas pelo iodo do tempo. Aproximou-se do silêncio; não desse silêncio que adormece na certeza de que irá acordar num novo amanhecer, mas do outro, daquele que é próprio dos amordaçados, de quem da vida já nada espera. Enganava-se. Sabemos hoje que não seria para sempre: a Sony reeditaria, em 1999, os cinco títulos que compõem o catálogo lançado pela CBS (a divisão britânica da Columbia, hoje propriedade da Sony), na década de setenta. Foi a medo: dois álbuns num só suporte (alguns), livretos espartanos (com erros ortográficos), som não remasterizado, ausência de faixas bónus, enfim, um pequeno desastre para todos aqueles que há muito ansiavam pela chegada dessas edições. Foi, no entanto, um começo, um renascer que trazia no seu regaço álbuns tão marcantes como Third (1970) ou Fourth (1971), peças únicas da formação Dean/Hopper/Ratledge/Wyatt cujo maior encanto provinha do contrabalançar dos caminhos futuros ambicionados por Mike Ratledge, o jazz e a música minimal repetitiva – leia-se A Rainbow in Curved Air (1969), de Terry Riley –, com a espontaneidade rock e zéfiro psicadélico de Robert Wyatt.

Mas a tensão que accionava os pistões da Soft Machine era a mesma que lhe dividia os componentes: «[A banda] seria sempre tensa por causa das características envolvidas: rapazes jovens, na casa dos vinte, envolvidos com maquinaria perigosa», revelou Hugh Hopper este ano à revista Uncut. No final de 1972, depois de afastados Kevin Ayers (descobriria na sua carreira a solo, os talentos de Mike Oldfield e Bridget St. John) e Daevid Allen (fundaria os Gong), chegaria a vez de também Robert Wyatt abandonar o grupo. Depois de, em 1970, ter editado o seu álbum de estreia a solo, o experimental The End an Ear, Wyatt convocaria algumas luminárias da então emergente cena musical da Cantuária e formaria os Matching Mole – que em bom trocadilho francófono significa Soft Machine –, com quem gravaria apenas dois álbuns, Matching Mole (1972) e Matching Mole's Little Red Record (1972), antes de sofrer um acidente que o deixaria paraplégico e com uma obra-prima nas mãos: o insuperável Rock Bottom, de 1974.

Começava então a parceria – chamemos-lhe assim – entre os Soft Machine e os Nucleus, grupo que, liderado pelo brilhante trompetista Ian Carr, fez o equivalente em solo britânico ao que Miles Davis fez em solo estadunidense, sendo certo que os Soft Machine também já nessa altura brincavam ao rock mascarado de jazz. De resto, o contar dos anos mostrou ao grupo que o afastamento dessa receita levaria a uma menor atenção por parte do público; dir-se-ia que os Soft Machine haviam crescido cedo demais: entenderam ser a alucinação do pesadelo a vontade de continuar independentemente da frustração perante algo sempre inacabado, mas à vista, quase ao alcance da mão, e no entanto, inalcançável.

A capa de Fourth deixava desde logo antever o futuro do grupo: Elton Dean e Hugh Hopper no verso; Robert Wyatt e Mike Ratledge na frente. Olhando para ela - a capa, claro está - é-nos fácil perceber que enquanto Wyatt procura a porta de saída, Ratledge está já a medir o espaço que tem à sua frente – de braços cruzados, olha-nos com o mesmo olhar fixo das estátuas, imunes ao tempo e dele testemunhas; um olhar que traduz na perfeição a música que não se ouve, mas para onde se mergulha enquanto o quarteto assina a sua derradeira obra a merecer-nos interjeições entusiasmadas. E é estranho: Fourth começa por ser uma tentativa, uma dor de cabeça para quem ainda há pouco havia lançado uma obra-prima. Mas lá arregaçaram as mangas, e apenas por esse gesto, ou pela forma como terá sido feito, saberíamos que o acto anterior não fora apenas um bafejo da sorte, mas antes o resultado do temperamento de quem aos vinte anos possuía já a maturidade suficiente para enfrentar, pelo menos, a próxima vintena.

Assim, se “Teeth†tinha o condão de conciliar Ratledge e Wyatt por debaixo de um belíssimo solo de Dean, “Virtually†combinava magistralmente, ao longo dos seus quatro andamentos, texturas modais riquíssimas e entusiasmantes improvisações sobre progressões harmónicas, cuja estranheza - no melhor dos sentidos, entenda-se - faria corar Berlioz.

A ferrugem nunca dorme

A correr, a deixar de correr, a olhar para trás. Fifth (1972) é uma ilusão de alento, um raspar de ferrugem onde antes ouvíamos um som que de tão cristalino se podia ouvir a quilómetros de distância, assim, tão alto como só as coisas livres conseguem. Ainda que tenha beneficiado com a breve presença do baterista australiano Phil Howard, um turbilhão sónico que quase remetia Hopper e Dean à condição de excedentes, sendo por isso substituído pelo ex-Nucleus John Marshall, Fifth não escapou ao afunilamento estético causado pela saída de Wyatt. Assim, enquanto o jazz-rock (Mahavishnu Orchestra, Return to Forever, Weather Report) lançava raízes na escrita apoiada por enormes quantidades de improvisação, os Soft Machine invertiam o seu sentido de marcha e tornavam-se mais próximos do conservadorismo de um Charles Tolliver. Dir-se-ia, pois, que o grupo tinha os dias por ordem prontos a usar; e por estarem ordenados podiam ser lançados ao ar para que o vento com eles desenhasse as variações das horas; e por estarem ordenados podiam ser contados. Fifth é, por essa razão, um prenúncio de morte. À excepção de Six (1973), o grupo não mais mudaria a estrutura dos seus discos, mesmo após a saída de todos os seus membros fundadores – aconteceria no francamente mau Rubber Riff (1976) e no pouco mais que competente Land of Cockayne (1981), ambos descatalogados.

Entretanto, a ferrugem carcomia a máquina. Sendo Dean um improvisador nato, logo se apercebeu da incompatibilidade existente entre a sua veia de criador de instantâneos e o rigor milimétrico que então vinha à tona. O seu substituto, o ex-Nucleus Karl Jenkins, acentuaria essa tendência enquanto principal compositor da fase tardia do grupo, levando à saída de Hopper que, curiosamente, iria encontrar-se várias vezes com Dean ao longo da sua carreira a solo – mas já antes havíamos assinalado o carácter profético da capa de Fourth.

Six irrompe assim como o segundo momento de uma difícil transição. Se em Fifth, o grupo avançou cegamente para aquilo que julgava ser terra firme (a tal ilusão de alento), em Six decidiu tactear primeiro antes de avançar. O resultado, um disco inteiramente gravado ao vivo e um outro com experiências mais ou menos pessoais gravadas em estúdio (quase ao estilo de Ummagumma (1969), dos Pink Floyd), ainda que longe do brilhantismo de outros dias, permitiu ao grupo o recuperar de fôlego necessário para voltar aos grandes discos com Seven.

Já sem Hopper, e com Ratledge lentamente a abdicar da escrita a favor de Jenkins, Seven é um registo curioso. É certo: falta-lhe a irregularidade organizada de Third, esse quebra-cabeças pacientemente montado de forma a tornar-se num uno e inseparável ser. No entanto, não deixa de ser um ensejo que para sempre se cola a quem o ouve, e que parece lamber a pele por detrás das orelhas enquanto pernas, soltas, descem numa leveza de neve por um corpo, imaterial, que é nosso, e que naquele momento se acha subjugado às partículas de som que o beijam.

Depois de Seven, e uma vez findo o contracto com a CBS, os Soft Machine não eram mais do que a designação que anos antes haviam pedido emprestada a Burroughs. Fechava-se depois a casa. Tiravam-se os reposteiros e as cortinas, embrulhava-se a louça, cobriam-se os sofás de lençóis brancos, verificavam-se as janelas e, por fim, dava-se a volta à chave.

Passados oitos anos sobre o relançamento catastrófico destas obras, a Sony, talvez aproveitando o facto de 2007 ser um bom ano para os Softs (atenção aos discos novos de Robert Wyatt, Kevin Ayers e Soft Machine Legacy), volta agora a disponibilizar o catálogo Soft Machine/CBS, desta vez, e porque os tempos são de exigência, com todas as regalias que o mercado impõe. Ou seja, os luxuosos mini-LPs japoneses devem ter ensinado à Sony o significado da expressão “targetâ€. Mas isso, claro, fica aqui entre nós.

Third: um álbum (ainda) com o sonho no olhar

Existem discos que se sentam à mesa no lugar de honra, ali no topo, dobrados sobre o prato cheio e de guardanapo amarrado ao pescoço. Distinguem-se da multidão: possuem a cor da elegância e bom trato, e emanam um aroma que nos transporta em direcção ao passado, trazendo para cima da mesa, todas aquelas doces memórias do tempo em que travámos conhecimento. Entretanto, o êxtase de um primeiro encontro já lá vai; ouvir um disco desses, já não oferece o arrebatamento de quem descobre pela primeira vez um corpo. No entanto, ao procuramos as razões que nos levaram a um tal estado (se é que é do domínio da razão), descobrimos as mesmas feições, os mesmos jeitos que antes conhecíamos de cor.

Third, dos Soft Machine, é um desses discos. É uma obra que subtilmente se foi entranhando na nossa carne, e à qual reconhecemos cada sussurro, mas também cada explosão de vivacidade, e cada grito, que a impõem enquanto força maior – essa força que nos obriga a crescer, mas que nos conserva o sonho no olhar.

Editado em 1970, marca o rompimento definitivo com a aura psicadélica, e algo nonsense, de Kevin Ayers. Com Miles Davis a editar Bitches Brew(e vá, In a Silent Way) do outro lado do Atlântico, cabia agora aos Soft Machine, a árdua tarefa de levar por diante, em solo britânico, a bandeira do jazz-rock. Assim o fizeram, inspirando toda uma série de músicos, maioritariamente oriundos da região da Cantuária, a seguirem-nos.

Entretanto caminhavam por caminhos nunca antes percorridos; as únicas pegadas que poderiam eventualmente ver, caso olhassem para trás, seriam as suas. Robert Wyatt foi o único a fazê-lo: a sua composição, “Moon in Juneâ€, data de 1967. Essa diferença é particularmente notória quando contextualizada: num total de quatro temas, um para cada lado, já que se trata de um registo duplo, “Moon in June†é por ventura o momento mais comedido ao nível da improvisação, sendo que a cumplicidade que une os músicos nos restantes três temas desaparece quase por completo nesta antevisão do que seria o primeiro álbum a solo de Wyatt.

Apesar disso, “Moon in June†não é nem de longe o ponto mais fraco ou menos inventivo do álbum. Dos quatro muros guarnecidos com cacos de garrafas, apenas um (este) tem manchas de sangue, não diz cocó e usa lã sobre a pele. Os outros terão, no entanto, outros encantos: o primitivismo de “Facelift†lança âncoras em estruturas megalíticas. Sente-se-lhe a rudeza de um rapaz que atira pedras aos pássaros, apenas porque lhes vê no descanso, uma afronta aos desígnios do Senhor - sabemos que o rapaz está enganado, contudo, nos dias que correm, não será sensato dizer-lhe que perante uma obsessão pelo sagrado, ou simplesmente por aquilo que é inatingível ao Homem, apenas podemos (enquanto espécie) responder com a antítese que julgamos ser a mais directa. Assim, enquanto “Facelift†é um monólito sagrado, “Slightly all the Time†é a pura perversão. Imagine-se, pois, um clube pestilento; todos se conhecem e até já deram, pelo menos alguns, uma voltinha com a senhora – bem, sejamos francos, depois de tanta perfeição, só mesmo caindo na desgraça é que se pode afirmar ter vivido a experiência humana. E “Slightly all the Time†vive essa experiência, não através da sua própria desgraça, mas porque sabe usufruir da desgraça alheia. De facto, enquanto exercício de - inspirar fundo - straight-foward jazz-rock, não teria muito de especial, não fosse o facto de jamais ter sido igualado, o que é claramente uma desgraça para a humanidade – ou será que também “Slightly All the Time†se fez a partir de um bafejo dos deuses?

«Faz sentido», diz o barman (favor notar que o cliente tem sempre razão).

Partimos. “Out-Bloody-Rageous†não se dá a conhecer com facilidade. No início são apenas pequenas células que só mais tarde se multiplicam até formarem uma camada tão densa que, ao fendê-la com a mão, quase se ouve zoar. Atinge-se depois o ponto de saturação; tudo se dobra sob o peso destas notas interligadas, quais músculos que se juntam em uníssono para ensaiarem acções futuras. O interesse de Michael Ratledge por composições traçadas em linhas rectas crescerá até atingir a esterilidade em Six. Pelo caminho irão ficar todos os outros membros que, ao arredarem-se para outros projectos não menos interessantes, deixarão de lado os “ses†para confiantemente apostarem nos “masâ€.

Samuel Pereira
an_american@paris.com

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