Velhos são os trapos australianos
· 21 Mai 2007 · 08:00 ·

Apesar de acusar na pele o aspecto grotesco dos anos sobre ele impostos, Rocky Balboa voltou a calçar as luvas de pugilista no filme (franchising?) do mesmo nome porque viu o seu estatuto de lenda reduzido à sua representação virtual, numa simulação conduzida por um canal desportivo. Com esse regresso tardio, era evidente o risco de resvalar a sua ambição para o campo do puramente anedótico. Alguém no cinema referia acertadamente que Sylvester Stallone se parecia com um boneco do Contra-Informação. Mas a seu favor, Balboa teria sempre o argumento de quem pretende por uma última vez sentir no corpo a saudável pressão da competição. Os Radio Birdman e os Scientists, duas glórias maiores do punk australiano de final da década 70, retomam ao activo nem que seja para provar que não são apenas figuras de cera dispostas num museu concebido como memorial do rock do continente marsupial. Velhos são os trapos australianos.


Radio Birdman Zeno Beach
2006
Bittersweet Recordings / Popstock!

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http://www.radio-birdman.com
http://www.bittersweetrecordings.com
http://www.popstockportugal.com



Compreende-se que o risco de Zeno Beach não seja o mesmo do seminal EP Burn my eye, que, em 1976, correspondia ao trampolim incendiário que haveria de projectar os seus autores em órbita de culto, quando antes desse lançamento eram apenas o conjunto de rostos anónimos sobre os quais se fechavam as portas de labels que precipitadamente rejeitaram uma peça-chave do punk australiano. Os Radio Birdman, porém, não parecem conformados com o estatuto arrecadado por essa altura. Nem sequer acusam a inércia que pudesse impor o facto de actualmente gozarem de estabilidade em empregos excepcionais (o guitarrista e mentor técnico Deniz Tek usufrui de alta patente em aviação). Zeno Beach não é certamente o disco a que se sujeitam, na corda bamba do ridículo, as bandas cujos membros não sabem se o melhor será dedicar a mão direita ao instrumento ou ao marfim de uma bengala. Enquanto culminar de uma certa vaga de revivalismo, o primeiro disco de originais em dezoito anos, maioritariamente preenchidos por longos interregnos, deve grande parte da sua pertinência e sentimento de urgência à homenagem que havia a prestar ao entretanto falecido baixista Carl Rorke, que chegara a integrar o colectivo.

Apesar de implícita, a elegia fúnebre reveste todo o grafismo de um Zeno Beach formado, na sua maioria, por faixas que soam como ampulhetas em vertigem vertical obrigadas a execuções directas apenas sabotadas por solos de guitarra pouco menos que aceitáveis. “We’ve Come so Far (To Be Here Today)” verbaliza os motivos do regresso e prova que, assim como indica o seu nome, o vocalista Rob Younger arremessa um provocador refrão com uma jovialidade que provavelmente não lhe anteciparíamos. Existe um aditivo revestimento soul conferido pelos teclados que tornam ainda mais evangélico o regresso dos Radio Birdman. “The Brotherhood of Al Wazah” recorda, da maneira mais dignificante e com camaradagem entre piano e guitarra, o talento do ex-Clash Joe Strummer para a escrita de hinos derrotistas tão grandiosos como aqueles que colocavam nos píncaros os vitoriosos. Zeno Beach convence tão certeiramente que apetece invocar para o caso as palavras de outra entidade musical actualmente a viver nova vaga de revivalismo: os Joy Division e o mote Dance, dance, dance, dance to the radio que jamais deixou de ecoar.

The Scientists Sedition
2007
ATP

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http://www.atpfestival.com

Com a inconsciência de quem só décadas mais tarde vê a sua influência ser totalmente reconhecida, os Scientists acrescentaram acidentalmente um cunho significante ao rock imundamente ensopado de fuzz que emergiu a partir de Seattle (esse que é vulgarmente designado como grunge por imposição dos catálogos de roupa). Faz, por isso, todo o sentido que os Mudhoney tenham retribuído o favor ao apadrinharem o regresso dos Scientists ao activo com o convite para actuarem numa edição do impressionante festival ATP que tinha o seu cartaz seleccionado pelos primeiros. A actuação incluída em Sedition, porém, respeita a uma primeira parte cumprida pelos Scientists num concerto dos Mudhoney e não ao momento ATP que os relançou. A verdade é que pouco importa o contexto, quando Sedition assinala todos os obrigatórios pontos elementares para que os Scientists sejam considerados visionários da indomável e electrizante estética que valeu no início da década anterior à Sub Pop na cruzada em que se viu envolvida contra o artificialismo hard rock .

Refira-se como estratégico ponto de contacto dessa relação uma compilação de nome Absolute, pedagogicamente lançada pela própria Sub Pop, que reunia a melhor colheita Scientists, além de acrescentar achas à fogueira do ano de 1991 em que o punk voltou a estalar. Sedition reincide sobre clássicos incluídos em Absolute sem os tratar como fósseis reavaliados ou vacas sagradas levadas de novo a pastar – antes destemidamente seguro de que mecanismos que não falharam há vinte e cinco anos só muito caprichosamente fracassariam actualmente. A fé abunda, por exemplo, numa “Swampland” que evidencia lodo no título e que efectivamente o espalha por meio de uma guitarra sem restrições de distorção que intensifica o até aí elegante jogo rítmico mais próximo dos Cramps. As rotações não decrescem numa “Burnout” que torna pesadas as pegadas a um baixo monstruoso que dispõe de oportunidade de empurrar de um penhasco toda a estrutura rock que vacila em “Solid Gold Hell”. Até alguma descoordenação pontual contribui para que mais genuínos se pareçam uns Scientists que, em Sedition, não só provam que a ascensão do termo grunge coincidiu com a eliminação gradual da dose de risco no rock de fuzz maciço, como também formam um manifesto em apologia da devolução desse risco ao meio hoje dominado por fenómenos britânicos sem pontinha de sal ou qualquer domínio da ciência rock.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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