O pré e o pós Buddha
· 02 Abr 2007 · 08:00 ·
Não sei exactamente explicar porquê, mas quero uma Buddha Machine só para mim. Era esse o pensamento – verbalizado ou não – de quem dava por si aglutinado pelo contágio que surtiu a caixinha dos nove loops. Essa que foi concebida pela dupla FM3 como suporte facilmente portável de variantes para sutras repetidos circularmente com vista à formação de um espaço sonoro espiritualmente proporcional à meditação. Além das funcionalidades que acumulou, a Buddha Machine devolveu o debate a um nicho peculiar da música e reverteu a favor do formato analógico aquilo que supostamente se encontra condenado a ser servido digitalmente. E se acaba por ser verdade que a Buddha Machine não altera o rumo ao designado ambient (reconhece-se, assim, o abuso do título atribuído ao último artigo que lhe foi dedicado por aqui), também não deixa de ser legitimo afirmá-la como circunstância marcante na cronologia do género. Com isso em mente, analisa-se de seguida os documentos sobrados dos momentos que antecederam e sucederam ao advento Buddha Machine.


Fm3 + Dow Wei Hou Guan Yin
2006
Lona Record / Flur

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http://www.fm3.com.cn
http://www.lona-records.com
http://www.flur.pt



Esclareça-se de imediato que Hou Guan Yin é um objecto de uma pertinência transcendente e independente do imenso hype que se acercou dos FM3 aquando da popularidade global da Buddha Machine. A colaboração aqui arquivada em nada equivale a um daqueles telefilmes que são repescados para, no circuito vídeo, rentabilizarem o recente sucesso de um actor entretanto galardoado com um Óscar (Russel Crowe, por exemplo). Até porque a meticulosidade electro-orgânica característica da dupla FM3, célula Pequinesa operacional desde 1999, não deixaria de o ser, nem seria propositadamente activada por ocasião de uma prestação partilhada com o baterista Dou Wei, na capital chinesa em Março de 2004 (quando o fenómeno BM se encontrava ainda distante).

Além disso, não é a insuflação do ego que move qualquer um dos envolvidos em Hou Guan Yin, convergência translúcida de três fluências combinadas alquimicamente num convidativo paraíso onde desagua uma electrónica de paul (preenchida por ruídos de insectos sintéticos) e um ambient salubre (purificado pelos drones de Christiaan Virant que formam parte considerável da identidade dos FM3). Durante 36 minutos, é concedida à aura a oportunidade estratégica de se banhar num dilúvio de sons híbridos (mais orgânicos que electrónicos) – caudal bem próximo do que resultaria se um álbum-icebergue de Terje Isungset, músico gélido, se derretesse e trouxesse consigo pequenas partículas esponjosas, que, em Hou Guan Yin, assumem a corpulência de teclados e metais vários arrastados pela corrente partida de um templo budista em ruínas. Numa escala FM3, Hou Guan Yin oferece um tremor rítmico inédito no trabalho da dupla (cuja estabilidade zen é saudavelmente perturbada por Dou Wei), enquanto que os drones conhecem uma cauda que se dissipa, em vez de ser engolida pelo mecanismo de pescadinha de rabo na boca, como se escutava à Buddha Machine.

V/A Jukebox Buddha
2006
Staubgold / Flur

+ info
http://www.staubgold.com
http://www.flur.pt


Apesar do oportunismo que lhe pode ser apontado, não deixa de ser heróica a intenção dos quinze intervenientes presentes em Jukebox Buddha: partir de um objecto à partida dado como estático e esgotável como qualquer gadget, e fazer desse um pretexto para reinvenções pós-modernas geradas a partir do mesmo ponto inicial – a badalada Buddha Machine e os nove loops que encaixa. Mais que meras remisturas ou reaproveitamentos directos dos sons mais célebres do experimentalismo Chinês, escuta-se à compilação da Staubgold (monitorizada pelos próprios FM3) toda a variedade possível de aplicações e permutas no que toca aos sons que debita o dispositivo minúsculo, interpretações diversas do sibilar que emitiu, no regresso, o Boomerang Buddha. Exercícios há que se projectam como satélites de árdua catalogação muito vagamente ligados ao imaginário do mote (caso do trip-hop esotérico de “Karma-Cola”, a cargo de dois nomes normalmente associados ao dub, Adrian Sherwood e Doug Wimbish).

Mas a fadiga também afecta todo aquele que se leva demasiado a sério neste jogo de apropriações: Robert Henke – o senhor Monolake que não deve ser confundido com o ex-guardião do Benfica – afoitou-se já a um disco inteiro centrado nos loops da caixa e o resultado foi o previsível Layering Buddha, derivativa corpolarização gradual das camadas, à priori úteis a acumulação espiritual, que passam, no seu disco, a conhecer ligeiras mutações (e a adquirir uma progressividade mais musical). O contributo dos Kammerflimmer Kolleftief não é muito mais interessante e prende-se demasiado ao que se espera dos mesmos: uma micro-banda-sonora, a trailer de um biopic dedicado à vida do fantasma que habita a Buddha Machine.

Tudo o resto é digno de ser escutado e prova de que o gadget também aguça o engenho. A sabedoria de Aki Honda manifesta-se numa “The Buddha in New York” que alterna, com resultados dramáticos, entre um drone hipnótico e terapia de choque servida em vagas electrocutantes (a relembrar que a Machine também tem um interruptor). Os supracitados Adrian Sherwood e Doug Wimbish levam a cabo uma digressão robotico-zen através de selecção inteligente dos trechos mais serenos da Machine. Gudrun Gut (um dos dois Einstürzende Neubauten envolvidos no projecto) “chula” as capacidades sensuais que pode eventualmente encerrar a caixinha originalmente baseada num propósito religioso. A equipa de sonho, Jelinek / Pekler / Leichtmann, brinca com os rios de dinheiro que rendeu a máquina e transformam os loops em jingles publicitários na elucidativa “BuddhaMachineCommercial”. E mesmo que a balança entre o trigo e joio não tombasse, por dilema, para um dos lados, “BP//Simple”, a cargo da superlativa dupla SunnO))), justificaria por si só a aquisição de Jukebox Buddha como complemento perfeito para a sua base. Pois se o drone é o responsável por toda esta euforia e fenómeno, quem melhor que os SunnO))) para uma monumental tese sobre o assunto? Não podiam ser mais respeitáveis as honras prestadas à Buddha Machine.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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