Como o velho se torna novo
· 19 Mar 2007 · 07:00 ·
© Angela Costa

A programação pode condenar e formatar o músico. O segredo é utilizar a tecnologia como um aliado criativo e não como inimigo.

Já é uma velha questão. Velha mas inexplicavelmente pouco debatida: a relação do músico moderno com o passado ancestral e a sua atitude perante a tradição. Por aqui vai-se ocasionalmente tentando esmiuçar as atitudes de determinados artistas em relação à matéria gerada durante o período do virtuosismo da composição, durante o período onde os paradigmas se erguiam ao mesmo ritmo que a imaginação dava forma à matéria. Tempos em que criar para além do imaginável podia ser constrangedor. Outros tempos, diriam muitos. A relação da tradição com o modernismo nunca foi pacífica. E em plena era digital, surgem cada vez mais músicos e produtores dispostos a abdicar das tecnologias actuais e abraçarem a composição convencional.

À medida que a tecnologia ao serviço da música se foi desenvolvendo também o facilitismo foi-se elevando. A programação limou arestas á produção, mas também foi limitando a expressão livre, os gestos nobres da espontaneidade e até o próprio desafio funcional na arte de tocar instrumentos. A dependência da máquina é generalizada seja no computador, e respectivos softwares, seja pelos parafernais equipamentos electrónicos que abundam no mercado, que muitas vezes transformam o inculto musical em vedeta ou leigos em profissionais. O talento nato foi sendo substituído pela gratuitidade do simples carregar de botão. A imaginação trocada pela programação easy ou do it your self. Não se estranhe então que a actual música de dança urbana tenha entrado num beco dominado pela comodidade tecnológica.

Como Sam The Kid fez questão de referir numa recente entrevista aqui no Bodyspace, o hip-hop é uma das vítimas da evolução e na minha opinião da própria programação, criando-se loops intermináveis e repetitivos sem sentido e sem espírito. "Hoje em dia é uma indústria que vive muito à pala dos produtores." refere Sam, continuando: "O produtor hoje tem um papel tão relevante ou maior que o próprio rapper." Comentando ainda a ausência de identidade em muitos dos projectos hip-hop actuais: "Os beats em 93, 94, 95 eram grandes sons, os grupos tinham mais identidade e traziam algo para a arte". Mas não se pense que o hip-hop é caso isolado neste mundo dominado pela indústria. A astúcia artística, perspicácia intelectual, a subtileza do conhecimento ou intensidade cultural vão também lentamente desaparecendo de géneros, outrora ricos, como a soul, o r&b, o funk e até mesmo de derivações recentes do jazz moderno como o nu-jazz ou broken-beat. Para não falar na decadência das linguagens de Detroit ou Chicago que após a massificação aviltaram-se, perdendo algum do fulgor criativo.

As excepções existem, como em tudo na vida. E são essas pequenas - e cada vez mais raras - fugas ás regras que qualquer melómano que se preze deve elevar ao estatuto de referência - e talvez paradigma, se o tempo assim o decidir - num mundo cada vez mais uniformizado e descrente na possibilidade de ainda existir espaço para o simples prazer de fazer música com objectivos e nexos arquitectados. Nexos que não extravasem o humanamente tolerável numa conjectura pouco favorável a aventuras desmesuradas. Talvez por isso estas duas propostas aqui apresentadas sejam o perfeito exemplo da vontade de quebrar as barreiras da programação actual, da agudeza de espírito na forma como o passado avito imerge na era digital ou simplesmente como o breakbeat, se usado inteligentemente, ainda pode ser um suporte para mais diversas ideias, configurando e actualizando o tradicional sem que este perca a identidade, criando-se simultaneamente novas e aprazíveis estéticas que vão enriquecendo o presente.

Mummer SoulOrganismState
2006
Klein Records

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htpp://www.kleinrecords.com

Poderá ser um paradoxo tentar encontrar aqui a veia criativa que enriquecia os vasos do virtuosismo de outrora por entre tão sofisticada electrónica contemporânea. Mas acaba por ser o exercício de indagação dos elementos de outros tempos o principal motivo de interesse. O óbvio não é opção nesta operação. O gosto reside na descoberta do rico filão jazz, blues e soul camuflados por entre princípios electrónicos ora dominados por um experimentalismo breakbeat ora em busca de desenvoltura criativa em torno das linguagens de Chicago ou Detroit. Não se estranhe então que o nome deste projecto austríaco, liderado por Stefan Jungmair (ex-Mum), se chame Mummer, que em português poderá ser interpretado como camuflar ou esconder. Nada haverá a esconder por entre tamanha eloquência. O som de SoulOrganismState, entre o minimalismo electrónico, o funk de 70, o jazz e a importação de referências nascidas no grande delta do Mississipi, proporciona um espectáculo virtual, semi-organico, repleto de coloridos boreais e com peso certo para envergar a bandeira da criatividade sem nunca prejudicar-se com acessórios pleonásticos. Um perfeito exemplo de como a memória convive com a modernidade e de como da fricção dos dois ergue-se um conjunto de músicas que reflectem a vontade de um produtor aventurar-se no desconhecido. E está visto que ainda compensa alguém dar o passo em frente sem ter medo de tropeçar.

Marc Moulin I Am You
2007
Blue Note Europe

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http://www.marcmoulin.com
http://www.bluenoteeurope.com

Marc Moulin não é um nome estranho e podemos mesmo concordar com os press releases e considerá-lo uma lenda viva. Músico, um dos responsáveis pelos Telex e os Aksak Maboul, jornalista, produtor, Moulin, de origem belga, é um dos homens mais influentes da música europeia. Responsável por uma discografia invejável, ideólogo da era Placebo, Moulin tem sido reconhecido pelas novas gerações como um erudito disposto a integrar - de mente aberta como sempre o fez - os elementos caracterizadores de cada conjuntura. Saiu da sombra em 2001 com Top Secret, um pouco à boleia da fórmula de St. Germain, perseguiu três anos depois, com Entertainment, um modelo próprio, reforçando a sua personalidade criativa, tendo finalmente acertado neste ano de 2007 no tom certo para música que à muito ansiava voltar a produzir. I Am You é a amalgama sonora que Moulin já nos acostumou, onde se encaixam o jazz, o funk de outras eras - de ouro! - e o breakbeat funcional e eloquente. A programação abandona a fórmula vigente e exala a formalidade que pretende aconchegar as ideias de fusão de Miles Davis - um dos ídolos do belga - ou a proficiência de Jimmy Smith. I Am You não inventa a roda, muito menos perverte o status quo, mas faz nos reflectir sobre a capacidade de inventividade de um "velho do Restelo" que não abandona a memória nem rejeita a tecnologia, antes as incorpora na sua retórica. Um exemplo.

Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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