«Direito ao Silêncio»
· 21 Ago 2003 · 08:00 ·

Num espaço em que a música tem lugar privilegiado, centremo-nos, em silêncio ou não, numa experiência única e rara: entrar na mente de alguém que não a aprecia. Catarina Nunes, a nossa entrevistada, teceu interessantes e curiosos apontamentos sobre a sua (não) relação com a música, revelando mesmo pensamentos e sentimentos que - não muito dificilmente - ultrapassam o campo de percepção de indivíduos que, de um modo apaixonado e intenso, se ligam a esta linguagem e arte. De um grande leque de respostas que, certamente, dariam lugar a mais umas quantas questões, o Bodyspace seleccionou, numa tarefa difícil, as que achou mais estimulantes e surpreendentes de um ponto de vista de descoberta. Sigamos, então, a viagem, com ou sem música.


«Eu e a música não temos relação». Eis uma das primeiras afirmações de Catarina quando lhe peço que me fale do seu sentimento perante a música. Proponho-lhe, logo no início da entrevista, uma lista de verbos que hipoteticamente possam caracterizar esta (não) relação. A entrevistada utiliza-os, um a um, numa sequência interessante e poderosa: «não gosto de música, chego a odiá-la, quando invade o meu espaço... sem dúvida evito-a! Incomoda-me pensar que se disser “não gosto de musicaâ€, “não aprecio músicaâ€, “não conheço nada de música†me olhem como se fosse um E.T. Sofro com a música quando me dizem “ esta música vai lembrar-me sempre este momento...†porque sei que não será recíproco... nestas alturas abomino a música. Não aprecio música. Sou indiferente à música». Inércia e apatia são, aliás, substantivos referidos posteriormente por Catarina para exprimir esta hostil convivência. Confessa-me, de seguida, que lhe chega mesmo a incomodar o facto de alguém lhe perguntar algo do género “não gosta de música?! mas o que é que você faz?â€. Para Catarina Nunes não gostar de música não implica propriamente que não haja nada para fazer. Pelo contrário, diz procurar ocupar os seus tempos livres de forma útil, lendo, escrevendo, indo ao cinema e convivendo com os amigos. Passa simplesmente ao lado da música como muitos passam ao lado do desporto ou do cinema, por exemplo.

Quando a questiono sobre o grau de afinidade de pessoas que lhe são próximas para com a música, apercebo-me facilmente que a sua apatia não é partilhada por tais pessoas. O irmão – segundo Catarina - está na fase dos Nirvana, o padrinho integra um grupo coral e toca viola e a mãe «pensa que canta melhor do que ninguém». Relativamente aos amigos, todos «sem excepção adoram música... para alguns a música é a sua paixão. Têm uma música para cada momento, para cada pedaço da sua vida. Choram quando ouvem a sua música preferida», afeição esta que, por sua vez, diz compreender perfeitamente: «Não gosto de música, mas compreendo que a maioria das pessoas goste, adore, ame. Viva para a música». Mesmo considerando poder vir a ser entendida como contraditória na sua posição, Catarina diz não conseguir «imaginar um mundo sem música. Não que não fosse possível, mas porque o Homem não o permitiria. O homem não consegue viver com o silêncio, com a solidão, com o vazio...». Mais adiante, torna mais clara esta sua perspectiva: «Na música e pela música o Homem expressa sentimentos, estados de espírito, vontades, frustrações, anseios... a música é uma forma, entre as várias possíveis, de o Homem se dar ao mundo e de receber o mundo, o seu e o dos outros... também me dou ao mundo, também recebo o mundo, mas de uma outra forma». Do ponto de vista de Catarina, é precisamente esta diferente forma de se dar ao mundo que a maioria das pessoas não consegue conceber. Diz, no entanto, não se sentir injustiçada, antes incompreendida. «Nunca fui excluída por não gostar de música. Pelo contrário, todos os amantes de música tentam incluir-me nesse seu mundo», remata.

Interpelada, entretanto, sobre quais os sons que lhe são agradáveis ao aparelho auditivo, Catarina diz sentir prazer em escutar « o “ping-ping†da chuva na janela quando não preciso de me levantar cedo, o mar, um truz-truz suave na porta, um respirar junto ao ouvido, o bater do coração». Por outro lado, desagradam-lhe sons emitidos pelo «trânsito caótico, buzinas, máquinas em funcionamento, o teclado do computador». Na sua perspectiva «o mundo está envolto em sons agradáveis, desagradáveis e outra coisa... a música! Quando somos indiferentes à música ela não é nem agradável nem desagradável» - conclui, numa afirmação susceptível de activar algum alvoroço na mente daqueles que vivem com e pela música de forma tão próxima. Ainda relativamente à questão do som, pedi à entrevistada que me falasse da sua sensibilidade ao ruído. A sua resposta é determinada: «O ruído surpreende-me. O som de uma metralhadora, de um aspirador em funcionamento, um pássaro a cantar ou um assobio (...) leva-me a agir, a procurar a origem. E até mesmo uma forma de o silenciar... O ruído é ocasional. Chega e passa...». Por sua vez, conclui que a sua experiência com a música não lhe provoca sensações confortáveis. «A minha relação com a música faz-me experienciar muitas outras coisas: incompreensão, solidão, tristeza, abandono... Mas não me leva a agir... leva-me a, todos os dias, gostar menos um bocadinho de música». Para Catarina, a música não lhe traz harmonia nem desarmonia, revela-me mais tarde. A propósito do ruído, deixa no ar uma pergunta retórica que facilmente poderia constar de um guião de debate sobre música: «Não consideram os amantes da música que qualquer forma de ruído possui musicalidade?». Para pensar e discutir, certamente.

Numa era em que a música é elogiada e elegida por centros comerciais, ruas, museus ou capelas para servir de animação ou contemplação a quem visita esses espaços, achei pertinente perguntar à entrevistada se esta sobreexposição da música lhe incomodava. A resposta foi negativa. Catarina parece, aliás, se ter conformado com esta realidade, assegurando-me que teve de «aprender a viver no mundo mais comum e superficial da música». Tem aparelhagem mas raramente lhe dá uso. Quanto a bares e discotecas, mesmo não apreciando, comparece quando o grupo de amigos, para uma saída nocturna, opta por esses locais. Acima de tudo, para Catarina o importante não é o lugar onde se está mas as pessoas com quem se está. Mesmo que procurasse evitar esses lugares, a música aparecer-lhe-ia de qualquer forma. «Eu não paro para ouvir música. Mas, indubitavelmente, a música entra-me pelos ouvidos, todos os dias», constata Catarina. Acerca desta convivência não desejada, desabafa: «o que me aborrece na música é ela estar por todo o lado (e) o nem sempre ter como lhe escapar...». Mais à frente, ainda a propósito do direito à diferença, pergunto-lhe se considera a música uma tirania imposta pela liberdade de expressão e de acção aos indivíduos que não tem o gosto particular pela música ou, por outro lado, se compreende que a sua (sobre)exposição é meramente a concretização do ideal dessas mesmas liberdades. Resposta: «A liberdade do outro começa quando acaba a minha. A música é-me “imposta†na medida em que me entra pelos ouvidos em qualquer lugar. Mas não me considero limitada na minha liberdade de gostar ou não gostar. Ninguém me pode impor algo que eu não quero mas também não vou pedir para desligarem a música num centro comercial de cada vez que lá entro. Respeito o direito de cada um fazer o que gosta, mesmo que para isso me seja imposto algo que não gosto. É uma questão de abstracção: a música está lá, para os outros. Mas, para mim, não existe».

Relativamente à sua atitude perante a música, – que afirma jamais ser histérica - Catarina Nunes conta ao Bodyspace que «um amigo, apaixonado pela música, diz-me que não tenho uma atitude de humildade perante a música, porque não gosto, mas também nem sequer tento gostar...». Eis uma ideia que muito provavelmente poderá passar pela mente de quem passa os olhos por este artigo. No entanto, Catarina defende-se perante eventuais críticas, afirmando que compreende o gostar ou não de música como uma opção e um direito. Ela optou simplesmente por não gostar, ao contrário da maioria da humanidade. «Penso que a música não me consegue cativar. Não sou eu que não quero nada com ela, ela é que não quer nada comigo...», confessa. Neste contexto, citei-lhe vários excertos de um texto de Paulo Sarmento, de nome «Entrevista (Extracto)», publicado no livro Limalhas, onde o autor desenha uma entrevista a um ser imaginário que não compreende a música. Do imaginário ao real, algumas das perspectivas aproximam-se fortemente, com as devidas distâncias de radicalismo. Pedi à entrevistada que comentasse, assim, algumas passagens do texto. À afirmação de tal indivíduo inexistente que dizia «intriga-me, com efeito, que sejam tão raros os que, como eu, a detestem», Catarina responde: «não conheço ninguém que não goste de música, ou melhor que tenha uma relação com a música semelhante à minha. Mas isso não quer dizer que não exista algures alguém parecido. Desde o momento em nascemos a música está lá. Não dizem que é benéfico para os bebés, ainda no ventre da mãe, contactarem com música? Antes mesmo de nascer o Homem já está “familiarizado†com o dó ré mi fá sol lá si dó...». Quando o tal personagem diz a dado momento, no texto, que «a música é uma aberração da natureza», ela retorque. «A música é obra do homem». De seguida, dou-lhe a conhecer um outro excerto do texto. «Recuso-me a admitir que tenha alguma disfunção, uma vez que a música é (considerada) uma linguagem universal e uma manifestação presente em todas as culturas!», diz o indivíduo. Ela responde-me, abordando de novo do sentimento de incompreensão. «Eu não me admiro quando me dizem que não gostam de coisas que eu gosto como poesia, teatro... Quem não gosta disso sofre de alguma “disfunção� Não. Então, eu também não sofro de nenhuma disfunção só por não gostar de música». Falando em patologias, Catarina confessa sofrer, tal como o ser imaginário, «quando há música por perto (...), por não conseguir gostar». Ainda, dentro deste contexto , afirma que a música é, para si, por vezes, sinal de distúrbio. Concretiza a ideia, de imediato, para que dúvidas não restem: «penso que mesmo dentro da música há distúrbio e harmonia. Se não nela própria, pelo menos, nos sentimentos que, por vezes, através dela, o Homem tenta expressar, dar a conhecer». No fim do seu comentário aos excertos apresentados, a entrevistada revela-nos mais uma vez um pensamento convicto: «A música tanto constrói como destrói, tanto une como divide, depende, tal como tudo o que é feito pelo Homem, da forma como o seu poder é usado. A música marca gerações, pedaços da história... Provoca revoluções, as multidões nos estádios a cantar... É preciso dizer mais?». Não tão extremista quanto o personagem do livro de Sarmento, diz mesmo não reconhecer «à musica poder para começar conflitos que não os geracionais».

A certa altura diz-nos Catarina: «Constrange-me saber (e) sentir que muitos passam a vida a cantar quando a sua alma chora...». Lembrei-me de Beth Gibbons e o quanto Catarina iria abominar a ideia de ouvir alguém cantar lamentos de uma vida triste. Perguntei-lhe se lhe fascinava a ideia de música enquanto transmissão de pensamento e sentimento. Resposta: «Não preciso ouvir música para receber pensamentos e sentimentos. Gosto de ler as letras das músicas. Chego, por vezes a rever-me em algumas... mas isso não é música. Posso dizer que aprecio o lado silencioso da música», ou, arriscaria eu, o lado poético da música. Relativamente a uma ideia mais abrangente que compreende a música como veículo de cultura, Catarina Nunes mostra-se mais concordante, apesar de continuar a ver a música enquanto cultura apenas como mero apontamento informativo. «Cada país, região, cultura tem uma música específica. Não é uma questão de conhecer, é talvez uma questão de “saberâ€, de me manter informada. O Fado é português».

Mesmo na recta final da entrevista, falo-lhe do silêncio enquanto utopia representativa da harmonia do mundo. Assumindo, desde logo, a sua preferência pelo silêncio em detrimento da música, Catarina desenvolve a sua teoria. «Silêncio, a “música†dentro de nós... uma procura... quando somos nós e aquilo a que chamamos alma... o Homem foge do silêncio. O silêncio nem sequer é visto como uma possibilidade, mas a música já é uma certeza... Portanto, o homem buscará sempre a música e raramente o silêncio, até que este lhe chegue como imposição...». Para si, o silêncio «é o som perfeito. Busco-o no meio do emaranhado de sons agradáveis, desagradáveis e da música... As reticências simbolizam aqui alguns momentos de procura de silêncio... E é também assim que agora fico... À procura de silêncio...».

Ler 'Entrevista (Extracto)' de Paulo Sarmento

Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt

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